sábado, 23 de maio de 2020



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Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.

(Armando Freitas Filho - De Numeral/Nomimal, 2003)

domingo, 19 de abril de 2020


OBS: um vírus transformou a vida do planeta.
A Liberdade é a Possibilidade do Isolamento
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre.
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'

sexta-feira, 27 de março de 2020



INÚTIL RECLAMAR

inútil reclamar
se o que se foi é nuvem     
que se enruga ao bel prazer
e como tal é viagem que não cessa.

inútil reclamar
se o corpo que é feito de trevas
e varandas
no fundo sempre se orna de esperanças.

inútil reclamar
se o que se perde se veste do bagaço do vivido
e é justamente daí – que reacende –
seu facho perdido.


BATALHA, Rogério. "Inútil reclamar". In:_____. Azul. Rio de Janeiro: Texto Território, 2016

quarta-feira, 25 de março de 2020





Se não houvesse tristeza nem miséria, se em todo o lugar corressem águas sobre as pedras, se cantassem aves, a vida podia ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas, por serem já sabidas as respostas, ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não valeria a vida duma flor.

José Saramago - Memorial do Convento.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020



É UM APRENDIZADO ... ACEITAR AS PERDAS...

"Eu não estou sofrendo, eu estou lutando... Lutando para fazer parte das coisas, para estar conectada a quem eu fui um dia." (...) “Tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida, que sua perda não é nenhum desastre.” 
Num dos momentos mais emocionantes em Still Alice (Para Sempre Alice)*, a protagonista, Dra. Alice Howland, interpretada pela atriz Julianne Moore, faz um discurso contando que está com Alzheimer e cita o poema A Arte de Perde de Elizabeth Bishop.

“ A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente Da viagem não feita.
Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe.
Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas.
E um império Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles.
Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada.
Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério.”

domingo, 26 de janeiro de 2020

Um dia…Pronto!…Me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer: Que me importa?
O diabo é deixar de viver.
(Mário Quintana)

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020




UMA MENINA

Uma menina
de cabelo vermelho
perdeu olhos
sonhos
espelhos
perdeu o desejo de ser boa, má
perdeu rio
lama
mar
perdeu a dor antiga
a quase alegria
perdeu a flor que escondia no sexo
a lembrança do primeiro beijo
o desamparo do último gozo
perdeu vidrinhos de geleia
meias
bilhetes
adesivos
relógios
asas
pai
mãe
filhos
véus
dentes
pinças
pincéis
meias
pentes
postais
tesouras
livros
lápis
entranhas
sangue
peso
cabelos
canetas
chapéus

Uma menina
de cabelo vermelho
(ou seria negro
amarelo
azul
marrom?)
morreu/nasceu
assim:
perdendo
(Marize Castro)