sábado, 29 de setembro de 2012

Esse mar implacável...

“Vejo esse mar implacável e desolado, tão orgulhoso de sua espuma e de sua coragem, levemente salpicado de gaivotas ingênuas, quase irreais, e de imediato me refugio numa irresponsável admiração”.


(A Trégua, Mario Benedetti)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se"

Nas cortes é uma velha e sábia tradição que o Bobo ou Jogral ou Poeta tenha por função reverter os valores sobre os quais o soberano baseia seu domínio, e zombar deles, e lhe demosntrar que toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de peças que não se ajustam, todo discurso contínuo um blablablá. Todavia, há vezes em que estes chistes provocam no Rei uma vaga inquietação: essa também está decerto prevista, até mesma garantida por contrato entre o Rei e seu Jogral, mas nem por isso deixa de ser um tanto inquietante, não só porque a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se, mas principalmente porque ele se inquieta de verdade.


(Italo Calvino in: O castelo dos destinos cruzados)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Verás melhor...

O que tu viste amargo,

Doloroso,
Difícil
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...

(Cânticos XXVI , Cecília Meireles)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Hoje é terça-feira


Uma paranoia leve pairou, mas segurei a guia de Ogum
(era terça-feira) e fui em frente.


(Caio Fernando Abreu – Cartas, a Jaqueline Cantore, Sampa, 24 de junho de 1981)

sábado, 28 de julho de 2012

Penso que fomos cegos


O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, sou um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder. (...) Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem"
(in "Ensaio Sobre a Cegueira" José Saramago)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Assim se despe para repousar...

O DESGOSTO


O desgosto de não encontrar nada encontro comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer busca uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — porque me havia eu de curar disso. E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica ou mais (...)do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?

Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de (...) a estátua pensada da minha existência.

Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e […], prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.

Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos, quer para as solicitações (...)

Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida (...) Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.

(Bernardo Soares – Fernando Pessoa)