[...]faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver.
(Clarice Lispector)
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Autonomia & Abismos
AUTONOMIA
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(Wislawa Szymborska)
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(Wislawa Szymborska)
Marcadores:
Poesia Wislawa Szymborska; Imagem Salvador Dali
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
sábado, 29 de setembro de 2012
Esse mar implacável...
“Vejo esse mar implacável e desolado, tão orgulhoso de sua espuma e de sua coragem, levemente salpicado de gaivotas ingênuas, quase irreais, e de imediato me refugio numa irresponsável admiração”.
(A Trégua, Mario Benedetti)
(A Trégua, Mario Benedetti)
Marcadores:
Mario Benedetti; Imagem Al Magnus
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
"a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se"
Nas cortes é uma velha e sábia tradição que o Bobo ou Jogral ou Poeta tenha por função reverter os valores sobre os quais o soberano baseia seu domínio, e zombar deles, e lhe demosntrar que toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de peças que não se ajustam, todo discurso contínuo um blablablá. Todavia, há vezes em que estes chistes provocam no Rei uma vaga inquietação: essa também está decerto prevista, até mesma garantida por contrato entre o Rei e seu Jogral, mas nem por isso deixa de ser um tanto inquietante, não só porque a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se, mas principalmente porque ele se inquieta de verdade.
(Italo Calvino in: O castelo dos destinos cruzados)
(Italo Calvino in: O castelo dos destinos cruzados)
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
Verás melhor...
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
(Cânticos XXVI , Cecília Meireles)
Doloroso,
Difícil
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
(Cânticos XXVI , Cecília Meireles)
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Cecília Meireles; Imagem Salvador Dali
terça-feira, 7 de agosto de 2012
Hoje é terça-feira
Uma paranoia leve pairou, mas segurei a guia de Ogum
(era terça-feira) e fui em frente.
(Caio Fernando Abreu – Cartas, a Jaqueline Cantore, Sampa, 24 de junho de 1981)
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