“Escolha o seu sonho”
Devíamos poder preparar os nossos
sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria sutil da noite e da
nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas
incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão
sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.
Como quem resolve uma viagem,
devíamos poder escolher essas explicações sem veículos nem companhia – por
mares, grutas, neves, montanhas e até pelos astros, onde moram desde sempre
heróis e deuses de todas as mitologias, e os fabulosos animais do Zodíaco.
Devíamos, à vontade, passear pelas
margens do Paraíba, lá onde suas espumas crespas correm com o luar por entre as
pedras, ao mesmo tempo cantando e chorando. – Ou habitar uma tarde prateada de
Florença, e ir sorrindo para cada estátua dos palácios e das ruas, como quem
saúda muitas famílias de mármore… – Ou contemplar nos Açores hortênsias da
altura de uma casa, lagos, de duas cores e cestos de vime nascendo entre
fontes, com águas frias de um lado e, do outro, quentes… – Ou chegar a Ouro
Preto e continuar a ouvir aquela menina que estuda piano há duzentos anos,
hesitante e invisível – enquanto o cavalo branco escolhe, de olhos baixos, o
trevo de quatro folhas que vai comer.
Quantos lugares, meu Deus,
para essas excursões! Lugares recordados ou apenas imaginados. Campos orientais
atravessados por nuvens de pavões. Ruas amarelas de pó, amarelas de sol, onde
os camelos de perfil de gôndola estacionam, com seus carros. Avenidas
cor-de-rosa, por onde cavalinhos emplumados, de rosa na testa e colar ao
pescoço, conduzem leves e elegantes coches policromos …
… E lugares inventados, feitos ao nosso gosto; jardins no meio
do usar; pianos brancos que tocam sozinhos; livros que se desarmam,
transformados em música. […]
Devíamos poder sonhar com as criaturas que nunca vimos e
gostaríamos de ter visto: Alexandre, o Grande; São João Batista; o Rei Davi a
cantar; o Príncipe Gautama…
E sonhar com os que amamos e conhecemos, e estão perto ou longe,
vivos ou mortos… Sonhar com eles no seu melhor momento, quando foram mais
merecedores de amor imortal…
Ah!… – (que gostaria você de sonhar esta noite?)
* Crônica
extraída do Livro “Escolha o seu sonho” de Cecília Meireles. 4ª ed., Rio de
Janeiro: Global Editora, 2016.
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