quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fim das ilusões?

A vingança da porta


Era um hábito antigo que ele tinha:

Entrar dando com a porta nos batentes.

- Que te fez essa porta? a mulher vinha

E interrogava. Ele cerrando os dentes:


Nada! Traze o jantar! - Mas à noitinha

Calmava-se; feliz, os inocentes

Olhos revê da filha, a cabecinha

Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.


Uma vez, ao tornar à casa, quando

Erguia a aldraba, o coração lhe fala:

Entra mais devagar.. - pára, hesitando...
Nisto nos gonzos range a velha porta,

Ri-se, escancara-se. E ele se vê na sala,

A mulher como doida e a filha morta.


(Alberto de Oliveira)

domingo, 27 de maio de 2012

A Linguagem

É língua muito transitiva a dos pássaros.

Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos.
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios.

(Manoel de Barros)

sábado, 12 de maio de 2012

Estou vazio como um poço seco




Estou vazio como um poço seco

Não tenho verdadeiramente realidade nenhuma

Tampa no esforço imaginativo!

(Álvaro de Campos)

domingo, 22 de abril de 2012

Prestar atenção no que se diz e no que se ouve

Prestar atenção no que se diz é tão importante quando no que se ouve. Nossa sociedade tão tagarela quanto auditivamente desatenta nos ajuda a esquecer que somos seres falantes. Ou seja, que produzimos efeitos sobre o outro pelo simples fato de falarmos. Talvez a memória de que nosso amor e nosso ódio trafegam com as palavras que lançamos ao vento por aí possa melhorar o rumo de nossas vidas.


(Márcia Tiburi, In: http://filosofiacinza.wordpress.com/)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Labirinto

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

(Jorge Luis Borges)

domingo, 18 de março de 2012

É preciso pensar...

Ando pelos subterrâneos
Como subterfúgio
Num continuum
Evito dores das luzes
Ando pelos ares
Como os pássaros
Encondo asas
Para não as cortarem
Às vezes ando
Como semiviva
Por lembrar a vida à morte
E não quero pensar nisso

(Rosália Milsztajn)

domingo, 4 de março de 2012

Perder é uma arte...


Uma arte

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde da perda
que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia.
Aceita o susto de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias ir.
Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe.
A última, ou a penúltima, de minhas casas queridas foi-se.
Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas.
E, pior, alguns reinos que tive, dois rios, um continente.
Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um enteamado),
mentir não posso.
É evidente: a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

(Elizabeth Bishop)