sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
MMXL
Seria um caos, é o Ano Novo.
O Ano Novo transmite a sensação de que somos aniversariantes. Todos. Temos que lembrar de todos. Todos aguardam um aperto, uma lembrança, um sinal elétrico de nossa voz. Não só esperar os cumprimentos, ir atrás da memória, de personagens secundários e enredos esboçados, formar sinapses rápidas e obedientes para produzir mensagens e participar de uma euforia que tudo o que não aconteceu antes vai acontecer agora. É vida nova, idade nova, ou coma profundo.
Antes de sair para a festa, fiquei um tempão escolhendo a cor de minha cueca, é uma operação patética, perguntei até para meus filhos. Um pai perguntando qual a cor de sua cueca aos filhos deve gerar anos de terapia. Branca, vermelha ou amarela? Não tenho amarela, fui de branca, ainda desconfiado que não optei pela mais certa e desprezei Oxum.
Sou tomado por uma falta de opinião, não consigo me agradar porque cumprirei mandamentos e pequenas regras que não sei de onde surgiram. A série de simpatias me torna antipático. Confiro as previsões do ano com interesse pessoal. Exercito a numerologia cabalística. Convoco os deuses do candomblé com nervosismo de um impostor, pois sequer pisei num terreiro para decorar suas influências.
É um excesso de superstições para uma noite. A última vez em que participei de uma gincana foi na sétima série e tropecei na corrida de sacos de estopa na reta final, desencadeando a derrota de minha turma.
Não existe escapatória. Ao fugir das tarefas, posso ser amaldiçoado e enfrentar o pior ano de minha vida.
Para me prevenir dos riscos, entro na roda. Estourar balão com aquilo que não desejo de jeito nenhum (sentei fácil em cima dos desaforos), soltar balão para o enxame de estrelas com aquilo que desejo de todos os jeitos (não havia vento e joguei vôlei sozinho e desesperado com as cercas dos vizinhos), comer lentilha (abomino esse feijão atrofiado), tomar champanhe cuidando com o teor alcoólico (já que voltaria dirigindo), completar sexo oral com as uvas sem cuspir as sementes.
No Ano Novo, nossos conhecidos aniversariam. O mundo inteiro de nossas relações volta-se ameaçador de ternura. Isso é um problema. Nossa agenda desenrola-se à frente como um mapa de uma cidade desconhecida. A Lista Telefônica é a Bíblia de capa colorida. Nada é desprezível, nenhum telefone, nenhum paradeiro. Uma enxurrada milenar de nomes e de adormecidas orfandades.
Condenados a reconhecer imediatamente alguém que conversamos num bar ou consagrar quem partilhamos uma amizade de duas décadas. Não importa o grau de afinidade, está de aniversário também. Merece nosso entusiasmo.
Não há como abraçar o imponderável. É como abraçar um baobá, a circunferência da árvore pedindo mais e mais braços emprestados.
Submeto-me a uma expectativa de reconhecimento que não tem fim. Distribuir paz, alegria, saúde, sucesso. Brindar com o copo cheio, transbordar de linho. Não esquecer ninguém. Ninguém.
E, no dia seguinte, acordar se desculpando, com o sentimento de culpa por ter se esquecido.
(Fabrício Carpinejar)
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
do nascer do 2011
CONTOS DO NASCER DA TERRA
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa. Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
—Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
(Mia Couto)
domingo, 26 de dezembro de 2010
Sobretudo aos domingos
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
(Caio Fernando de Abreu)
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
silêncio das tormentas
esta é canção de ferir e chorar
está é canção singela de partir
o ruído da chuva nas janelas
nada que ler e dormir
esta é uma canção de sentinela
e as verdades provisórias
o pasto, a neve, a glória
esta é canção de sortilégio-sacrifício
como queiras
é canção de bem-tratar e maltratar
é canção de funeral
de aves magras nas gambiarras
sem porvir ou provisão
para sentir-se só
sentir-se doente em cama de hospital
caminhar rente ao lodo e a chama
fechar os olhos e delir
esta é uma canção sem armistício
de patíbulos e de quintais
em que sentir-se longe
lá onde o horizonte se desfaz
esta é uma canção de nunca mais
(meu bem, me diga
o silêncio das tormentas
vai passar?)
(Marco de Menezes)
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Se eu nem sei onde estou?
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
(Cecília Meireles)
sábado, 18 de dezembro de 2010
Felicidades
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Chove...
Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?
Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te de meu...
E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuto, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...
(Fernando Pessoa)
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
E lembro daquela história zen, o rei que pediu ao monge um talismã que o protegesse de qualquer mal. O monge deu ao rei um anel, com a recomendação de abri-lo só em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo foi cercado pelos inimigos, e o rei encurralado numa torre. Ele abriu o anel. Dentro, havia um papelzinho dobrado. Ele abriu o papelzinho e leu uma frase assim: “Isto também passará”.
(Caio Fernando de Abreu)
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
Condição Humana
domingo, 12 de dezembro de 2010
E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação.
(Clarice Lispector)
sábado, 11 de dezembro de 2010
Centenário de Noel Rosa
O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia
(Filosofia - Noel Rosa)
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
senão uma despedida...
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(...)
Fernando Pessoa - Tabacaria
domingo, 5 de dezembro de 2010
É preciso não ter filosofia nenhuma
(Fernando Pessoa)
sábado, 4 de dezembro de 2010
Cai a noite...
O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
(Cecília Meireles)
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão, nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer relacionamento: amizade, família, trabalho, amor somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil. Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos, teimamos em pensar que ainda há remédio: um pobre band-aid serviu. Ou um passe de mágica que nos tornasse menos expostos, menos humanos.
(Lya Luft)
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde
via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de
fininho dolorosamente dobradas as costas e
segurando o queixo e a boca com uma das mãos.
Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente,
mas de maneira curta, curta, entendem? Eu
estava dando gargalhadas e agora estou
sofrendo nosso próximo falecimento, minhas
gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento
meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó
extrema do rato que se fere no porão, ai que
outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano
torpor me atira de braços abertos sobre as ripas
do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera
dividir o corpo em heterônimos - medito aqui
no chão, imóvel tóxico do tempo.
(Ana Cristina César)
terça-feira, 23 de novembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
de onde vêm os ecos de domingo?
Agora é dia feito e de repente de novo domingo em erupção inopinada. Domingo é dia de ecos quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas - de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco.
(Clarice Lispector)
sábado, 20 de novembro de 2010
outra vez os dias...
Foi esta, portanto a furtiva impureza que herdamos
sem saber como, este espaço, este canto assim vago,
estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,
estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas
de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos
rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés
onde nos recompomos das derrotas, este modo
de despejar os cinzeiros, estas tardes, este aclarar
da garganta para nada e os rebuçados amarelos
e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons
das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos
raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,
e os dias sempre os dias outra vez os dias.
(Miguel Cardoso)
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Enquanto isto os relógios se vão...
Cada pedaço de mim
sabe o inferno que é ser
sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios,
ser luz na escuridão das manhãs.
Cada todo de ti sabe a delícia
que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas,
ser azul no fundo do mar.
Cada suspiro de nós sabe
a angústia que é ser só um
na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina,
ser ninguém na roda da vida.
Enquanto isso os relógios se vão,
e vêem aqueles que sabem
o que é apenas ser na
ausência do nada.
(Clarice Lispector)
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Estava devendo esta divulgação
O Cio da Terra, um documentário que remexe a história recente. A produção de 42 minutos reúne depoimentos tendo como referência o evento “Cio da Terra” que uniu 15 mil jovens, em Caxias do Sul, RS em 1982. Foram três dias de música e encontros sócio-políticos, numa época ainda impactada pela ditadura militar. Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Eduardo Bueno, Jorge Mautner, Giba Assis Brasil Ednardo entre outros participam com depoimentos.
O documentário também foi construído com registros de imagens recuperadas de um filme super-8 realizado durante o evento e material de arquivo do período.
O Cio da Terra teve produção e direção de Cacá Nazario roteiro e co-direção de Eber Marzulo , fotografia de Bruno Polidoro e montagem de Denise Marchi e Rogério Ferrari. O projeto foi financiado com recursos do Fumproarte e do Banrisul. Cacá Nazario dirigiu ainda Justiça infinita (2002), Histórias Curtas - Descompassado coração (2003), Up Grade do Macaco (2005) Júlia (2006) e atualmente está realizando com o cineasta Bruno Polidoro o documentário Sobre 7 Ondas Verdes Espumantes (Um filme através da obra e vida de Caio Fernando Abreu).
do cineasta Beto Rodrigues. A mediação ficará por conta do jornalista Roger Lerina.
Cio da Terra, de Cacá Nazário. Brasil, 2010. Duração: 42 minutos. Colorido. Exibição em DVD. Classificação indicativa: livre.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Imposturas & Hipocrisias
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim:
do precipício:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
O número do mundo deste mundo
Não tem que me mostrar
A outra face
Face ao fim de tudo
Só tem que me dizer
O nome da república ao fundo
O sim do fim
Do fim de tudo
E o tem do tempo vindo;
Não tem que me mostrar
A outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. É proibido
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento.
(Torquato Neto)
domingo, 14 de novembro de 2010
"Dançe, dance Zarité, porque escravo que dança é livre...enquanto dança."
terça-feira, 9 de novembro de 2010
sábado, 6 de novembro de 2010
Tarde de sábado
"Me veio numa tarde de sábado. Não de agosto, como os antigos, embora comigo mesmo costumasse repetir que os agostos haviam invadido setembro, avançado sobre outubro até descobrir o novembro que ia em meio. Me veio numa tarde de sábado, em novembro. Em comum com os agostos de antes, a chuva. E bateu à porta, essa mesma que pintei inteira de amarelo para dar uma ilusão de luz às sombras desta casa. Tenho que ser preciso, tenho que refazer, e para isso preciso contar o que fazia antes.
domingo, 31 de outubro de 2010
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Puzzle de interesses
Demissão
Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.
(José Saramago)
sábado, 23 de outubro de 2010
Movimentos
Pela fresta observo a dança das cores,
nos vidros recortados.
Separam-se, aglutinam-se, desenham maravilhas
Como se bailassem calçando sapatilhas.
A cada movimento, uma surpresa,
a mesma flor concebida com destreza,
em seguida se espalha e se desfaz.
Por trás do seu processo giratório,
o caleidoscópio avisa:
a forma fugaz e imprecisa
e o colorido de hoje
é provisório.
(Flora Figueiredo)
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Um dia sem tempo nem substância...
Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma. Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as idéias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por trás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado. O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — o da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos. Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se a cela é tudo? E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.
(Fernando Pessoa)
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Final de segunda-feira
A noite me pinga
uma estrela no olho
e passa.
(Paulo Leminski)
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
domingo, 3 de outubro de 2010
Democracia
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.
(Bertolt Brecht)
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Tudo isto é estrangeiro, como tudo...
Tudo isso, seja o que for que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.
(Fernando Pessoa)
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Só viver, não é?
Tudo isso dói.
Mas eu sei que passa que se está sendo assim é porque deve ser assim, e virá outro ciclo, depois.
Para me dar força, escrevi no espelho do meu quarto: “Ta certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?” É o que estou tentando vivenciar.
Certo, muitas ilusões dançaram - mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo, eu faço força para manter algumas esperanças acesas, como velas. Também não quero dramatizar e fazer dos problemas reais monstros insolúveis, becos-sem-saída.
Nada é muito terrível. Só viver,não é?
A barra mesmo é ter que estar vivo e ter que desdobrar, batalhar um jeito qualquer de ficar numa boa. O meu tem sido olhar pra dentro, devagar, ter muito cuidado com cada palavra, com cada movimento, com cada coisa que me ligue ao de fora. Até que os dois ritmos naturalmente se encaixem outra vez e passem a fluir.
Porque não estou fluindo.
(Caio Fernando de Abreu)
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Salve a cultura!
Salve a Casa do Caio Fernando Abreu
pela memória do escritor gaúcho!
Em Porto Alegre, um movimento liderado por Andréa Beheregaray - peleia - pela preservação da casa onde morou o escritor Caio Fernando Abreu no bairro Menino Deus. Seja um@ apoiador@ para transformar a casa num centro de cultura do acervo do escritor.
Entre na página http://www.peticao.com.pt/caio-fernando-abreu e assine a petição.
sábado, 25 de setembro de 2010
Que é sem fim...
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Perdi-me no entrelaçar-se de malhas.
Entreguei-me no manchar-se de sonhos.
Marquei-me no soluçar-se de perdas.
Sob o peso deste som
um flautim
Sob o som deste peso
uma queda
rachou
a chave
calou
a chuva
barrou
a chama
(chuvisca no centro meu – nenhum grito)
(Ana Cristina César)
domingo, 19 de setembro de 2010
Escutando o mar...
sábado, 18 de setembro de 2010
Por certo...
"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia."
(João Guimarães Rosa)
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Último poema
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
(Manoel Bandeira)
quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Ontem choveu no futuro
(Manoel de Barros)
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Se eu...
Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,
Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,
Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
De cada dia
De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria;
em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã.
(Caio Fernando Abreu)
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Continuar...
Substituímos expressões fatais como “não resistirei”
por outras mais mansas,
como “sei que vai passar”.
Esse é o nosso jeito de continuar.
(Caio Fernando Abreu)
terça-feira, 31 de agosto de 2010
Processos & Processos
O que foi dito na nova travessia:
Em vez de serem apenas livres,
esforcem-se para criar um estado de coisas
que liberte a todos.
(Bertold Brecht)