quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Lembranças da vida


Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Convalescença de um prazer frígido. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência. Será que não sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim - mas com muito cuidado porque senão por um triz não sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo café no terraço no limiar deste crepúsculo que parece doentio apenas porque é doce e sensível.
(Clarice Lispector)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Terça-feira



"Quando se quer bem a uma pessoa a presença dela conforta.
Só a presença, não é necessário mais nada."
Graciliano Ramos

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Eu só quero

Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Coral"

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sempre há muitas nuvens

Discurso – Cecília Meireles

E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixe seu ritmo onde passa.
Venho de longo e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute ?
Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que algum ouvido me escute ?
Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim ?

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Um nada visível


(...) Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser loucura, ou de uma angústia que parece passar além dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de não saber o que é o mistério do mundo, dor de nos não amarem, dor de serem injustos conosco, dor de pesar a vida sobre nós, sufocando e prendendo, dor de dentes, dor de sapatos apertados – quem pode dizer qual é a maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na generalidade dos que existem? (...) Escrevo isto sob a opressão de um tédio que parece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incompreensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao vento inconscientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado outro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esquecimento branco do universo inteiro.
Bernardo Soares [Fernando Pessoa]

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Riscar o vôo


Viver no limiar dos pássaros

Voar todas as luas
Sem asas rasar os espaços
nadar entre as escolhas
cobrir a nudez do corpo
em cada vôo com o lume dos sargaços...
está é a asa que nos risca o vôo subliminar dos gestos.

(Eugénio de Andrade)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Nossas escolhas

"O LIVRO DA SOLIDÃO"
CECÍLIA MEIRELES
Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro - poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso - mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra - que é o que dá existência ás noções - vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, - e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, - mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...
Tudo isto num dicionário barato - porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino - umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.
(SÃO PAULO, FOLHA DA MANHÃ, 11 DE JULHO DE 1948.)