terça-feira, 31 de março de 2009

A soma dos dias


No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!,
o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
(Fernando Pessoa)

domingo, 29 de março de 2009

E você! Acertaria a "pergunta" ?


Contemporâneo, cruel, sensível, real, polêmico...




Cena do filme "Quem quer ser um milionário"
Título Original: Slumdog Millionaire
Site Oficial: www.quemquerserummilionario.com.br
Direção: Danny Boyle
Música: A.R. Rahman



"Abateu-se sobre mim um pouco daquela melancolia que ainda hoje me cativa.
Creio que, ao acolhe-la dentro de si, o forasteiro participa de algo que
só podem sentir os antigos moradores de um lugar,
pois a infância é a vara de condão que aponta sempre para a aflição:
só se conhece a melancolia de cidades resplendentes de glória
quando se viveu nelas em criança."
Walter Benjamim

sábado, 28 de março de 2009

Leite Derramado




Para amantes do Chico Buarque:


"Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expec­tativa que me impede de cair no sono. (...) Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as pro­fundezas, onde costumo sonhar em preto ­e­ branco."



Para o dia de ontem: dia nacional do circo


"No fundo,
riem-se uns dos outros,
o artista do crítico,
o crítico do pintor,
e o público de ambos."

(Monteiro Lobato)

quinta-feira, 26 de março de 2009

Que horas são?



Se alguma vez, nos salões de um palácio,
sobre a erva de uma vala ou na solidão morna do vosso quarto,
acordardes de uma embriaguez evanescente ou desaparecida,
perguntai ao vento,
a vaga,
ao pássaro,
ao relógio,
a tudo o que foge,
a tudo o que geme,
a tudo o que rola,
a tudo o que canta,
a tudo o que fala,
perguntai-lhes que horas são;
e o vento a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão:
São horas de vos embriagardes!
Para não serdes escravos martirizados do tempo,
embriagai-vos;
embriagai-vos sem cessar!
Mas de quê?
De vinho,
de poesia ou de virtude,
à vossa escolha.
Mas embriagai-vos!
Deslumbrai-vos!
Baudelaire

quarta-feira, 25 de março de 2009

Saudades...





"Venha quando quiser, ligue, chame, escreva - tem espaço na casa e no coração, só não se perca de mim"
(Caio Fernando de Abreu)

terça-feira, 24 de março de 2009

Pode ser...




A vida é crua. Faminta como um bico de corvos. E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima, olho-d’agua, bebida. A vida é líquida. (Hilda Hilst)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Descobertas


(...) Descobre-se os efeitos colaterais de um desenho no vidro traseiro de um carro e o que diz a chuva quando estamos presos na melancolia.
(Fabrício Carpinejar)

domingo, 22 de março de 2009

Alucinação ... é a nossa vida


Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra…)
Quero solidão.

(Cecília Meireles)

sábado, 21 de março de 2009

Descartável, indiferente e moderno! Assim é a vida contemporânea...


Porque entre o sim e o não é só um sopro,
entre o bom e o mau apenas um pensamento,
entre a vida e a morte só um leve sacudir de panos -
e a poeira do tempo,
com todo o tempo que eu perdi,
tudo recobre,
tudo apaga, '
tudo torna simples e
tão indiferente.

Lya Luft

Um pouco de sonho...


Quando pequena eu rodava,
rodava e
rodava em torno de mim mesma
até ficar tonta e cair.
Cair não era bom mas a tonteira era deliciosa.
Ficar tonta era o meu vício.
Adulta eu rodo mas quando fico tonta
aproveito de seus poucos instantes para voar.

Clarice Lispector

sexta-feira, 20 de março de 2009

Que bom se pudesse...


Que bom se pudesse ficar no campo, à beira da
estrada, encostar as faces na frescura do capim molhado, dormir,
esquecer, ser apenas uma pedra no caminho, a folha duma árvore...

Érico Verísssimo (Olhai os Lírios do Campo)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Relembrando Hermann Hesse

(...) Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de frutos, de ervas mais variadas. Se se dá o caso de o jardineiro desse jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja a de “comestível” e “erva daninha”, então não saberá lidar com nove décimos do jardim; arrancará as flores mais encantadoras, abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e olhá-las de través. Assim age o lobo das estepes para com milhares de flores da sua alma (...).
Hermann Hesse, in O Lobo das Estepes

quarta-feira, 18 de março de 2009

Março


Que etéreo veneno entorpecente
De sonhos infinitos e tranqüilos
Trazes contigo, límpido março azul
Das transparentes distâncias!
Helena Kolody (do livro "A Sombra no Rio", 1951)

terça-feira, 17 de março de 2009

De que serve sonhar um minuto?

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse – proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

segunda-feira, 16 de março de 2009

“Somos todos escravos de circunstâncias externas.” (Fernando Pessoa)


Conclusão do papo cult desta manhã:
" a vida é uma gangorra"

Fico pensando...


Ontem recebi um e-mail (sem nome) que, estilo "navalha na carne", revelou o que se deve fazer para deixar que o rumo da vida siga do jeito que sempre foi ... tipo, "se não ajuda, não atrapalha"...
Fico a pensar ...
"Quem diria que viver ia dar nisso?"
(Caio Fernando de Abreu)

domingo, 15 de março de 2009

Cansei de Ilusões

"Tô exausto de construir e demolir fantasias.
Não quero me encantar com ninguém."
Caio Fernando de Abreu

Passagem (dos meses, dos dias) das horas ...



Não sei sentir,
não sei ser humano,
não sei conviver de dentro da alma triste,
com os homens,
meus irmãos na terra.
Não sei ser útil,
mesmo sentindo ser prático,
quotidiano,
nítido.
Vi todas as coisas e maravilhei-me de tudo.
Mas tudo ou nada sobrou ou foi pouco,
não sei qual,
e eu sofri.
Eu vivi todas as emoções,
todos os pensamentos,
todos os gestos.
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda a gente.
Mas para toda agente isso foi normal e institivo.
Para mim sempre foi a excepção,
o choque,
a válvula,
o espasmo.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto demais ou de menos.
Seja como for a vida,
de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer,
a enjoar,
a cortar,
a roçar,
a ranger,
a dar vontade de dar pulos,
de ficar no chão,
de sair para fora de todas as casas,
de todas as lógicas,
de todas as sacadas,
e ir ser selvagem entre árvores e esquecimentos.

Álvaro de Campos

sábado, 14 de março de 2009

Convite para o Dia Nacional da Poesia


CONVITE
Poesia é brincar com palavras
como se brinca com bola,
papagaio, pião.
Só que bola,
papagaio,
pião de tanto brincar se gastam.
As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam.
Como a água do rio que é água sempre nova.
Como cada dia que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
José Paulo Paes

sexta-feira, 13 de março de 2009

Tempo... desmorona e se reconstrói


O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio
ou de presença.
Nada exige nem pede.
Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Carlos Drummond de Andrade

A vida se costura com alguns encontros e com muitas perdas


Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 12 de março de 2009

... vazio ruidoso do mundo.


SILÊNCIO
Minha casa tão longe do mar.
Minha vida tão lenta e cansada.
Quem me dera deter-me a sonhar!
Uma noite de lua na praia!
Morder musgos avermelhados e ácidos
E ter por fresquíssimo travesseiro
Um montão dessas curvas pedras
Que há polido o sal das águas.
Dar o corpo aos ventos sem nome
Abaixo o arco do céu profundo
E ser toda uma noite, silêncio,
No vazio ruidoso do mundo.
Juana de Ibarbourou

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ver o que nunca se tinho visto antes




O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.
Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Fernando Pessoa

segunda-feira, 9 de março de 2009

Desabafo



Tenho uma dor de concha extraviada,

Uma dor de pedaços que não voltam.

(Manoel de Barros)

sábado, 7 de março de 2009

Para o dia de hoje...


"... Há dias em que nego e outros onde nasço
há dias só de fogo e outros tão rasgados
Aqueles onde habito
com tantos dias vagos"
Maria Tereza Horta

quinta-feira, 5 de março de 2009

Mais um dia...



Há doenças piores que as doenças,
Há dores que não doem, nem na alma
Mas que são dolorosas mais que as outras.
Há angústias sonhadas mais reais
Que as que a vida nos traz,
há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a própria vida.
Há tanta cousa que, sem existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e nós...
Por sobre o verde turvo do amplo rio
Os circunflexos brancos das gaivotas...
Por sobre a alma o adejar inútil
Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Desassossego

O que tenho sobretudo é cansaço, e aquele desassossego que é gemeo do cansaço quando este não tem outra razão de ser senão o estar sendo. Tenho um receio íntimo dos gestos a esboçar, uma timidez intelectual das palavras a dizer. Tudo me parece antecipadamente fruste.
O insuportável tédio de todas estas caras, alvares de inteligência (...)
(Fernando Pessoa)