domingo, 31 de outubro de 2010

“Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor”

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Puzzle de interesses

Demissão

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.
(José Saramago)




sábado, 23 de outubro de 2010

Movimentos

Pela fresta observo a dança das cores,

nos vidros recortados.

Separam-se, aglutinam-se, desenham maravilhas

Como se bailassem calçando sapatilhas.

A cada movimento, uma surpresa,

a mesma flor concebida com destreza,

em seguida se espalha e se desfaz.

Por trás do seu processo giratório,

o caleidoscópio avisa:

a forma fugaz e imprecisa

e o colorido de hoje

é provisório.

(Flora Figueiredo)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Um dia sem tempo nem substância...



Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma. Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as idéias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por trás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado. O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — o da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos. Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se a cela é tudo? E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 19 de outubro de 2010



Acordei de um sonho estranho
Um gosto, vidro e corte
Um sabor de vida e morte

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Final de segunda-feira

A noite me pinga
uma estrela no olho
e passa.

(Paulo Leminski)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Quisera o canto jubiloso
que corresse por dentro de minhas palavras.
Como um rio destampado corresse para os campos.

(Manoel de Barros)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010


Talvez emudecer seja mais imprescindível
que parir palavras.

(Karen Debértolis)

domingo, 3 de outubro de 2010

Democracia

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


(Bertolt Brecht)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Tudo isto é estrangeiro, como tudo...


Tudo isso, seja o que for que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.

(Fernando Pessoa)