terça-feira, 29 de junho de 2010

Faço silêncios...


É preciso fritar o arroz bastante antes de jogar água fervendo.
E não pode mexer jamais depois de a água ser posta.
O alho deve fritar no óleo junto com o arroz.

Coisas que eu sei e que não. Eu sei muitas coisas.
Faxina por exemplo. Sei limpar uma casa de tal modo
Que não sobra um canto que não tenha sido tocado
Por minhas mãos.
Depois vou sujando. Com muito gosto.
Deixo peças na sala e louças sujas na pia.
Não na mesma hora mas um pouco
Bastante depois volto limpando.
Assim me faço.
Nos objetos que me acompanham.

Gosto de andar nas ruas e comprar coisas
Que vão se arrumando em torno de mim.
Tenho muitas coisas, quero dizer, tenho muitas camadas.
Uma camada de livros outra de sapatos.
Tem a camada de plantas. E toalhas de rosto.
Tenho camadas de cosméticos e de adereços.
Uma camada de nomes e de coisas que vejo.
Tudo ordenado ao meu redor. Em forma de corpo.
Um corpo que me sustenta quando o meu próprio me falta.

Cadeiras são meus ossos. Sapatos são meus braços.
Torneiras em meus poros. Paredes como roupas de inverno.
(Quando toca música em minha casa sai do umbigo)

Descanso recostada nas paredes da casa
Que me guardam como um abraço.
Me abraço quando me derramo na sala.
E na cozinha. Em geral adormeço no quarto.

Tudo em minha casa tem existência.
Todas as coisas significo.
Com os olhos. Ou com as mãos.
Minha casa tem silêncios
Que as vezes ouço. Em meu corpo
Tem silêncios maiores ainda.
Que às vezes ouço. E faço poemas.
Faço poemas dos silêncios que ouço.

(Viviane Mosé)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Processar, provação, provar...


Provação significa que a vida está me provando.
Mas provação significa também que estou provando.
E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Noite de São João


Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

(Alberto Caeiro)

terça-feira, 22 de junho de 2010

Estou atrás...




do despojamento mais inteiro
da simplicidade mais erma
da palavra mais recém-nascida
do inteiro mais despojado
do ermo mais simples
do nascimento a mais da palavra

(Ana Cristina Cesar)

domingo, 20 de junho de 2010

Os portões que dão para onde?

Não me acuse o leitor de obscurantista. Tenho uma confiança danada no futuro e é para ele que as minhas mãos se estendem. Mas o passado está cheio de vozes que não se calam e ao lado de minha sombra há uma multidão infinita de quantos a justificam.

(José Saramago. “Os Portões que dão para onde?”, in A Bagagem do Viajante)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"Morreremos quando tivermos que morrer"

NOSSO TRIBUTO À SARAMAGO... E NOSSA TRISTEZA PELA AUSÊNCIA...

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

(José Saramago)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Neste dia a chuva não parou



Esta tarde a trovoada caiu

Pelas encostas do céu abaixo

Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta

Sacode uma toalha de mesa,

E as migalhas, por caírem todas juntas

Fazem algum barulho ao cair,

A chuva chiou do céu

E enegreceu os caminhos...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz não,

Não sei porquê - eu não tinha medo -

Quis-me rezar a Santa Bárbara

Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah, é que rezando a Santa Bárbara

Eu sentir-me-ia ainda mais simples

Do que julgo que sou...

Sentir-me-ia familiar e caseiro

E tendo passado a vida

Tranqüilamente, ouvindo a chaleira,

E tendo parentes mais velhos que eu

E fazendo isso como se florisse assim.

Sentir-me-ia alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...

Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,

Julgará que ela é gente e visível

Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem

As flores, as árvores, os rebanhos,

De Santa Bárbara,?... Um ramo de árvore,

Se pensasse, nunca podia

Construir santos nem anjos...

Poderia julgar que o sol

Alumia e que a trovoada

É um barulho repentino

Que principia com luz.

Ah, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde de existir

Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,

Fiquei outra vez menos feliz...

Fiquei sombrio e adoecido e soturno

Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça

E nem sequer de noite chega...

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Sem aviso prévio

Sou pensionista da vida.
Na mesma tábua em que durmo
Escrevo meu trabalho
E ela farfalha, embora já sem folhas,
Só da lembrança de ter sido tronco.
Tenho uma pia no canto,
Que goteja
E é meu lago, meu rio, meu
Fundo mar.
Tenho um rijo cabide
À cabeceira
Para dependurar a pele
A cada noite.
Me dão café com pão, e às vezes
Algum vinho.
Dizem que só paguei meia pensão.
Há uma fome indistinta que me habita
Enquanto o medo
Com felpudos passos
Percorre o labirinto das entranhas.
Mas agradeço essas quatro paredes
E que me tenham dado uma janela.
Pois sei que a qualquer hora
Sem possibilidade de recurso
E talvez mesmo sem aviso prévio
Serei intimada
A devolver o quarto.

(Marina Colasanti)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Navegar o dia...




"Antes de me pôr a caminho, abro devagar e completamente os braços para depois fechá-los arredondados, tocando suavemente as pontas dos dedos de uma das mãos nas pontas dos dedos da outra. Como se faz para abraçar uma pessoa. Mas não há nada entre meus braços além do ar da manhã. Suspiro, sorrio, desfaço o abraço.
Então, com as mãos vazias, finalmente começo a navegar..."


(Caio Fernando Abreu)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Tempestável


A vida - diz Manoel, o são - é tempestável.
E o que é tempestável, Manoel?
Tempestável? Ah, tempestável!
É a vida, filho.
Quem lá sabe!
(Antonio Brasileiro)

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Pressentimentos


(...)
A felicidade sempre iria ser clandestina para mim.
Parece que eu já pressentia.

(Clarice Lispector)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Noite


O pó se acumula todos os dias sobre as emoções.

(Caio Fernando de Abreu)