terça-feira, 22 de outubro de 2013

Talvez


Talvez eu seja apenas mais um talvez, tentando ser certeza. Tentando ser para sempre, e parando sempre pela metade. (Caio Fernando Abreu)

domingo, 20 de outubro de 2013

RIO

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
 
Um rio nasceu.
 
(Vinícius de Moraes)

domingo, 15 de setembro de 2013


A rendeira

Na teia da manhã que se desvela
a rendeira compõe seu labirinto,
movendo sem saber e por instinto
a rede dos instantes numa tela.
Ponto a ponto, paciente, tenta ela
traçar no branco linho mais distinto
a trama de um desenho tão sucinto
como a jornada humana se revela.
Em frente, o mar desfia a eternidade
noutra tela de espuma e esquecimento,
enquanto, entrelaçado, o pensamento
costura sobre o sonho a realidade.
Em que perdida tela mais extrema
foi tecida a rendeira e este poema?

(Adriano Espínola)

sábado, 15 de junho de 2013

Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades – é a isto que eu chamo de respirar


Por que as pessoas escrevem? Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso respondê-la com a maior facilidade. Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver. Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o da política. Tive de criar o meu, como se cria um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse. Esta é a razão de toda obra de arte. Só o artista sabe que o mundo é uma criação subjetiva, que é preciso escolher, selecionar. A obra é a concretização, a encarnação do seu mundo interior. Ele espera impor sua visão pessoal, partilhá-la com os outros. Se não atinge esta última finalidade, o verdadeiro artista persiste assim mesmo. Os poucos momentos de comunhão com o mundo valem esse sofrimento, pois finalmente esse mundo foi criado para os outros como um legado, como um dom destinado a eles. Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento de vida. Para atrair, encantar e consolar. Escrevemos para acalentar nossos amantes. Para degustar em dobro a vida: no momento preciso e retrospectivamente, na sua lembrança. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são. Para podermos transcender nossa vida e alcançarmos o que existe além dela. Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem ao labirinto. Para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados. Escrevemos como os pássaros cantam, como os primitivos dançam seus rituais. Se você não respira quando escreve, não grita, não canta, então não escreva porque sua literatura será inútil. Quando não escrevo, meu universo se reduz; sinto-me numa prisão. Perco minha chama, minhas cores. Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades – é a isto que eu chamo de respirar.

(Anaïs Nin)

terça-feira, 21 de maio de 2013

A vida é para nós o que concebemos nela.


A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

Isto não vem a propósito de nada.

Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.

Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.

Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que [se] me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro — tantos, sem se entenderem, e todos certos.

Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, mal-disposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.

Mas quantos Césares fui!

(Fernando Pessoa)

sábado, 4 de maio de 2013

As Profecias


Tem dias que a gente se sente
Um pouco, talvez, menos gente
Um dia daqueles sem graça
De chuva cair na vidraça
Um dia qualquer sem pensar
Sentindo o futuro no ar
O ar, carregado sutil
Um dia de maio ou abril
Sem qualquer amigo do lado
Sozinho em silêncio calado
Com uma pergunta na alma
Por que nessa tarde tão calma
O tempo parece parado?

Está em qualquer profecia
Dos sábios que viram o futuro,
Dos loucos que escrevem no muro.
Das teias do sonho remoto
Estouro, explosão, maremoto.
A chama da guerra acesa,
A fome sentada na mesa.
O copo com álcool no bar,
O anjo surgindo no mar.
Os selos de fogo, o eclipse,
Os símbolos do apocalipse.
Os séculos de Nostradamus,
A fuga geral dos ciganos.
Está em qualquer profecia
Que o mundo se acaba um dia.

Um gosto azedo na boca,
A moça que sonha, a louca.
O homem que quer mas se esquece,
O mundo dá ou do desce.
Está em qualquer profecia
Que o mundo se acaba um dia.
Sem fogo, sem sangue, sem ás
O mundo dos nossos ancestrais.
Acaba sem guerra mortais
Sem glorias de Mártir ferido
Sem um estrondo, mas com um gemido.

Os selos de fogo, o eclipse
Os símbolo do apocalipse
A fuga geral do ciganos
Os séculos de Nostradamus.

Está em qualquer profecia
Que o mundo se acaba um dia

Um dia...

(Raul Seixas)

sexta-feira, 26 de abril de 2013

A GENTE AINDA NÃO SABIA


A gente ainda não sabia que a Terra era redonda.
E pensava-se que nalgum lugar, muito longe,
Deveria haver num velho poste uma tabuleta qualquer
— uma tabuleta meio torta
E onde se lia, em letrasAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. rústicas: FIM DO MUNDO.
Ah! Depois nos ensinaram que o mundo não tem fim
E não havia remédio senão irmos andando às tontas
Como formigas na casca de uma laranja.
Como era possível, como era possível, meu Deus,
Viver naquela confusão?
Foi por isso que estabelecemos uma porção de fins de mundo...

(Mário Quintana)

segunda-feira, 22 de abril de 2013


Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo. Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.
Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.
Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Poeira de sombras vivendo...


Poeira em ouro pairando
Sobre a brancura da estrada
És poeira e mais nada.
Poeira grisalha em rajadas revoando
Sobre a monótona estrada
És poeira, e mais nada.
Poeira negra nevoando
A parda e indefinida estrada
És poeira, e mais nada.
Ténue poeira levantada
Da vida da estrada
Poeira pairando, revoando, nevoando
Sobre a branca, a monótona ou negra estrada
Poeira de sombras vivendo
Ai de nós - és poeira e mais nada.
Por mais longe que a poeira
Possa ir
Cai sempre.
A poeira é sempre da estrada.

(FERNANDO PESSOA)

quarta-feira, 20 de março de 2013


Inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui. O inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A Segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (Ítalo Calvino)

quinta-feira, 14 de março de 2013


Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia,
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


João Cabral de Melo Neto

domingo, 24 de fevereiro de 2013

"Ainda não se cansara de existir e bastava-se tanto que às vezes, de grande felicidade, sentia a tristeza cobrí-la como a sombra de um manto, deixando-a fresca e silenciosa como um entardecer. Ela nada esperava. Ela era em si, o próprio fim."
(Clarice Lispector)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O dia inacabado

Como todos os homens, sou inacabado.


Jamais termino de ser.

Após a noite breve um longo amanhecer

me detém no umbral do dia.Perco o que ganho no sonho e no desejo

quando a mim mesmo me acrescento.

Toda vez que me somo, subtraio-me,

uma porção levada pelo vento.

Incompleto no dia inacabado,

livre de ser ainda como e quando,

sigo a marcha das plantas e das estrelas.

E o que me falta e sobra é o meu contentamento.



Ledo Ivo

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Aproveitar o tempo


Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Mílton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa