segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Ah, que esta vida é automática

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrivel!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso
Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...

(Mário Quintana)

domingo, 30 de janeiro de 2011

Destino

Flores que colho, ou deixo,

Vosso destino é o mesmo.

Via que sigo, chegas

Não sei aonde eu chego.

Nada somos que valha,

Somo-lo mais que em vão.

(Fernando Pessoa)

sábado, 29 de janeiro de 2011

Seguir a rota

atravessar marés

ventos funestos

tempestades

e seguir a rota,

imperturbável,

qual ave aquática,

sem deixar rasto nem sinal

(Augusto Cardeal)

domingo, 23 de janeiro de 2011

"É hora de embriagar-se!"

É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que lhe quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se sem perdão.

Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser. Mas embriague-se.

E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda a embriaguez já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio lhe responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser o escravo mártir do Tempo, embriague-se; embriague-se sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser".

(Charles Baudelaire)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

" A vida começa todos os dias "


Gota de orvalho
na coroa dum lírio:
Jóia do tempo.

(Érico Veríssimo)


Para Érico Veríssimo

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...

(Mario Quintana)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Tudo se gasta

Dor se gasta. E raiva também, e até ódio. Aliás também se gasta a alegria, eu já não disse?

Embora a gente se renove como todo mundo, tudo no mundo que não se repete jamais – pode parecer que é o mesmo mas são tudo outros, as folhas das plantas, os passarinhos, os peixes, as moscas.

Nada volta mais, nem sequer as ondas do mar voltam; a água é outra em cada onda, a água da maré alta se embebe na areia onde se filtra, e a outra onda que vem é água nova, caída das nuvens da chuva. E as folhas do ano passado amarelaram, se esfarinharam, viraram terra, e estas folhas de hoje também são novas, feitas de uma seiva nova, chupada do chão molhado por chuvas novas. E os passarinhos são outros também, filhos e netos daqueles que faziam ninho e cantavam no ano passado, e assim também os peixes, e os ratos da dispensa, e os pintos... tudo. Sem falar nas moscas, grilos e mosquitos. Tudo.”

(Raquel de Queiroz)

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O sol é pontual todos os dias

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;

E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.

Assim é a ação humana pelo mundo afora.

Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos.

E o sol é sempre pontual todos os dias.

(Alberto Caeiro)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Tempo & Distâncias



Acerto o relógio pelo sol.
Percorro as dez quadras
de meu mundo.
As ruas são conhecidas
e me atalham.

(Fabrício Carpinejar)

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Esquecimento



Aqui está a minha vida.
Esta areia tão clara com desenhos de andar
dedicados ao vento.
Aqui está a minha voz,
esta concha vazia, sombra de som
curtindo seu próprio lamento.
Aqui está minha dor,
este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está a minha herança,
este mar solitário
que de um lado era amor e, de outro, esquecimento.

(Cecília Meireles)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Saudades do Mar



Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim…
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo, intimamente,
A tua voz segue o mais secreto bailar
do meu sonho.
Em que momentos há
Em que suponho,
Seres um milagre criado só pra mim.

(Sophia de Mello)