quarta-feira, 28 de abril de 2010

Os rituais do dia a dia


Abro a porta do armário
como abro um diário,
a minha vida ali
dependurada
meu frusto cotidiano
sem segredos
intimidade exposta
que os botões não defendem
nem se veda nos bolsos,
espelho mais real que todo espelho
entregando à devassa
as medidas do corpo.

Armário
tabernáculo do quarto
que abro de manhã
como à janela
para sagrar o ritual do dia.
Sala de Barba Azul
coalhada de pingentes
longas saias e véus
emaranhados sem que sangue goteje.
Corpos decapitados
ausentes minhas mãos
dos murchos braços.

Do armário minhas roupas
me perseguem
como baú de herança ou
maldição.
Peles minhas pendentes
em repouso
silenciosas guardiãs
dos meus perfumes
tessituras de mim
mais delicadas
que a luz desbota
que o tempo gasta
que a traça rói
ainda assim durarão nos seus cabides
muito mais do que eu sobre meus ossos.
Nenhuma levarei.
Irei despida
deixando atrás de mim
a porta aberta.

(Marina Colasanti)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Sonhos

O sonho na prateleira
me olha com seu ar
de boneco quebrado.
Passo diante dele muitas vezes
e sorrimos um para o outro,
cúmplices de nossos desastres cotidianos.
Mas quando o pego no colo
(como às bonecas tão antigamente)
para avaliar se tem conserto
ou se ficará para sempre como está,
sinto sem estranheza
que dentro dele ainda bate
um pequeno tambor obstinado
e marca – timidamente –
um doce ritmo nos meus passos.

(Lya Luft)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Dia da Terra


"... que a vida só consome
o que a alimenta."

(Ferreira Gullar)

terça-feira, 20 de abril de 2010




o silêncio do sonho
traduzindo
uma imagem-movimento
que se desfaz
entre a verdade dos instantes.

(Rodrigo Garcia Lopes)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Já é noite...

Uma pequena música toca no fim do mundo.

Uma pequena lua desenha-se no alto do céu.

(Cecília Meireles)

sábado, 17 de abril de 2010

Dia de chuva


Dia de chuva.
É para a gente rasgar cartas antigas...
Folhear lentamente um livro de poemas...
Não escrever nenhum...

(Mario Quintana)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Outro dia



Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 14 de abril de 2010


"Ao permanecer imóvel, com o escuro contorno da floresta ao meu redor, me senti enfeitiçada. Neste momento, a primeira pétala começou a se mover e, outra após outra, enquanto a flor rompia para a vida."

(Margaret Mee)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Trama dos dias



O destino trama os dias
e desfaz o sonho: demarca
meus contornos, partes
disso que sou e serei.

Quem sabe desejei demais:
milagres não me bastaram,
mas quando eu quis ser rainha
fui simplesmente humana.

A voz da vida insiste,
chama para o que salva
ou desatina:
nem sempre a entendi.

Palavras buscam sentido
para o que fiz, falhei,
conquistei e perdi
- ou que me abandonou
nalguma esquina.

(Lya Luft)

domingo, 11 de abril de 2010

que flua...

Soneto

Eu preciso de música que flua
nas pontas finas, frágeis dos meus dedos,
nos meus lábios amargos de segredos,
com melodia líquida e nua.
Ah, a antiga ginga sã e crua
de uma canção que aos mortos dê guarida,
água que me cai sobre a testa erguida,
o corpo febril, um brilho de Lua!

A melodia pode enfeitiçar:
magia calma, respiração pura,
um coração que afunda no abandono
da mansa, escura imensidão do mar
e flutua pra sempre na verdura,
amparado no ritmo e no sono.

(Elizabeth Bishop)

sábado, 10 de abril de 2010

O tamanho do espaço

A medida do espaço somos nós, homens,

Baterias de cozinha e jazz-band,

Estrelas, pássaros, satélites perdidos,

Aquele cabide no recinto do meu quarto,]

Com toda a minha preguiça dependurada nele...

O espaço, que seria dele sem nós?

Mas o que enche, mesmo, toda a sua infinitude

É o poema!

- por mais leve, mais breve, por mínimo que seja...


(Mario Quintana)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Época de informações


Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.

Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.

Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.

(Affonso Romano de Sant’Anna)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Já é abril




amarelas, vermelhas
folhas novas anunciam
mangas que virão.

(Alice Ruiz)