domingo, 20 de fevereiro de 2011

Dia de Chuva

Dia de chuva.

É para a gente rasgar cartas antigas...

Folhear lentamente um livro de poemas...

Não escrever nenhum...

(Mario Quintana)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Laranja é quase loucura

O dia aqui está laranja. Como nossa infância. Laranja, recordas? Laranja que a gente pensava que emanava das lajes ou do telhado, mas vinha das mãos mexendo no futuro. Laranja de um sorvete que não existia, a não ser na luz que o comia. Laranja como a nossa convicção. Nunca pensei em laranja para vestir, hoje me acordei dentro dessa cor e lembrei o que não sabia. Laranja do interior da fruta, não da casca, do sumo que fica organizado para a boca e distribuído em lágrimas empacotadas, com o rigor de penas de um pássaro. Laranja dos olhos arregalados em fotografias. Laranja cristalino. Laranja crespo. Laranja como a crista do galo quando ele dorme. Laranja como a língua depois do xarope. Laranja como os pés depois de caminhar muito na areia. Laranja como as pontas dos dedos depois da maconha. Laranja como um pasto depois da fogueira. Laranja como a iluminação no túnel. Laranja da grama queimada na praia. Laranja de um chapéu de feltro guardado no armário. Laranja de uma cadeira de palha de três gerações. Laranja como o silvo do trem. Laranja como cavalos em celeiro. Laranja como um grito de criança na piscina. Laranja como um pátio sem cachorro. Laranja como um colete de lã dado pela tia. Laranja como o peito de um pássaro na minha grade. Laranja como uma lanterna de pilha fraca. Laranja como velas de igreja. Laranja como os joelhos invisíveis das abelhas. Laranja como um segredo enrugado. Laranja é quase loucura, se não fosse casa.

(Fabricio Carpinejar)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Palavras

Golpes
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.

(Sylvia Plath)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Assim é o tempo

Como em foto
já esquecida
assim me olhei
ausente
sem ter partido.
Como o ontem
logo amanhã,
rio sem margens
correndo suave
e quente.
Noite logo dia
assim é o tempo,
Guardei em adeus
este instante
de sépia vestido

(Eugenia Tabosa)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

As memórias procriam como se fossem pessoas vivas



Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidos. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.

(Agustina Bessa-Luís)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Apago a luz ou saio para dançar rock

Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair

(Caio Fernando de Abreu)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

E o sono chegava...

Tem dó de quem não dorme,

de quem passa a noite à espera

que desperte o silêncio.

O vento devia cantar nos plátanos

com a lua nova, ser mais uma folha

feliz nos ombros do outono.

Mas o vento parecia ter endoidecido:

de leste a oeste varria

a rua, varria a noite: o vento

alegremente

varria o mundo - em turbilhão

arrastava o lixo mil vezes imundo.

E o sono chegava.

(Eugénio de Andrade)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

É o que o tempo leva...

Tempo destinado
a esfregar e descorar
nódoas do passado.

(Flora Figueiredo)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Hoje é domingo de manhã

Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto. Nunca esquecerei esse domingo sangrento. Para cicatrizar levará tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heróica. Todas as vidas são vidas heróicas.


(Clarice Lispector)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Vagueando sobre a terra

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.
No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.

(António Gedeão)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A alegria
É toda feita
De melancolia

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Homenagem Rainha do Mar



Iemanjá Rainha Do Mar

Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?

Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá.

Onde ela vive?
Onde ela mora?

Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar.

O que ela gosta?
O que ela adora?

Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar.

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?

Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá!

Qual é seu dia,
Nossa Senhora?

É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar.

O que ela canta?
Por que ela chora?

Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar.

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?

Pescador e marinheiro
que escuta a sereia cantar
é com o povo que é praiero
que dona Iemanjá quer se casar

(Maria Bethania)