quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

[...]faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações

[...]faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver.


(Clarice Lispector)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Autonomia & Abismos

AUTONOMIA


Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.
(Wislawa Szymborska)

sábado, 29 de setembro de 2012

Esse mar implacável...

“Vejo esse mar implacável e desolado, tão orgulhoso de sua espuma e de sua coragem, levemente salpicado de gaivotas ingênuas, quase irreais, e de imediato me refugio numa irresponsável admiração”.


(A Trégua, Mario Benedetti)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se"

Nas cortes é uma velha e sábia tradição que o Bobo ou Jogral ou Poeta tenha por função reverter os valores sobre os quais o soberano baseia seu domínio, e zombar deles, e lhe demosntrar que toda linha reta oculta um desvio tortuoso, todo produto acabado um desconjuntar de peças que não se ajustam, todo discurso contínuo um blablablá. Todavia, há vezes em que estes chistes provocam no Rei uma vaga inquietação: essa também está decerto prevista, até mesma garantida por contrato entre o Rei e seu Jogral, mas nem por isso deixa de ser um tanto inquietante, não só porque a única maneira de desfrutar uma inquietação é inquietando-se, mas principalmente porque ele se inquieta de verdade.


(Italo Calvino in: O castelo dos destinos cruzados)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Verás melhor...

O que tu viste amargo,

Doloroso,
Difícil
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...

(Cânticos XXVI , Cecília Meireles)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Hoje é terça-feira


Uma paranoia leve pairou, mas segurei a guia de Ogum
(era terça-feira) e fui em frente.


(Caio Fernando Abreu – Cartas, a Jaqueline Cantore, Sampa, 24 de junho de 1981)

sábado, 28 de julho de 2012

Penso que fomos cegos


O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, sou um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder. (...) Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem"
(in "Ensaio Sobre a Cegueira" José Saramago)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Assim se despe para repousar...

O DESGOSTO


O desgosto de não encontrar nada encontro comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer busca uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — porque me havia eu de curar disso. E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deva pertencer à doença? Quem nos afirma que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica ou mais (...)do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?

Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de (...) a estátua pensada da minha existência.

Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo distante e […], prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.

Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos, quer para as solicitações (...)

Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida (...) Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.

(Bernardo Soares – Fernando Pessoa)

sábado, 30 de junho de 2012

Um vinho que abri...

"ODE AO VINHO"


Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vino, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste em um copo,
em um canto, em um homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.
O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
cai muros,
penhascos,
se fecham os abismos,
nasce o canto.
Oh tú, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.
Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou no outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no cerimonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
(Pablo Neruda)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fim das ilusões?

A vingança da porta


Era um hábito antigo que ele tinha:

Entrar dando com a porta nos batentes.

- Que te fez essa porta? a mulher vinha

E interrogava. Ele cerrando os dentes:


Nada! Traze o jantar! - Mas à noitinha

Calmava-se; feliz, os inocentes

Olhos revê da filha, a cabecinha

Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.


Uma vez, ao tornar à casa, quando

Erguia a aldraba, o coração lhe fala:

Entra mais devagar.. - pára, hesitando...
Nisto nos gonzos range a velha porta,

Ri-se, escancara-se. E ele se vê na sala,

A mulher como doida e a filha morta.


(Alberto de Oliveira)

domingo, 27 de maio de 2012

A Linguagem

É língua muito transitiva a dos pássaros.

Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos.
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios.

(Manoel de Barros)

sábado, 12 de maio de 2012

Estou vazio como um poço seco




Estou vazio como um poço seco

Não tenho verdadeiramente realidade nenhuma

Tampa no esforço imaginativo!

(Álvaro de Campos)

domingo, 22 de abril de 2012

Prestar atenção no que se diz e no que se ouve

Prestar atenção no que se diz é tão importante quando no que se ouve. Nossa sociedade tão tagarela quanto auditivamente desatenta nos ajuda a esquecer que somos seres falantes. Ou seja, que produzimos efeitos sobre o outro pelo simples fato de falarmos. Talvez a memória de que nosso amor e nosso ódio trafegam com as palavras que lançamos ao vento por aí possa melhorar o rumo de nossas vidas.


(Márcia Tiburi, In: http://filosofiacinza.wordpress.com/)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Labirinto

Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

(Jorge Luis Borges)

domingo, 18 de março de 2012

É preciso pensar...

Ando pelos subterrâneos
Como subterfúgio
Num continuum
Evito dores das luzes
Ando pelos ares
Como os pássaros
Encondo asas
Para não as cortarem
Às vezes ando
Como semiviva
Por lembrar a vida à morte
E não quero pensar nisso

(Rosália Milsztajn)

domingo, 4 de março de 2012

Perder é uma arte...


Uma arte

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde da perda
que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia.
Aceita o susto de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias ir.
Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe.
A última, ou a penúltima, de minhas casas queridas foi-se.
Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas.
E, pior, alguns reinos que tive, dois rios, um continente.
Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um enteamado),
mentir não posso.
É evidente: a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

(Elizabeth Bishop)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012



“Pudesse abrir a cabeça, tirar tudo para fora, arrumar direitinho como quem arruma uma gaveta. Tomar um banho de chuveiro por dentro"


(Caio Fernando Abreu)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Não eram flores



Não eram flores,
tampouco a aurora.

As palavras chegaram
sujas de sangue.

Delas, mal se podia
ver a face

por sob o silêncio
ressequido.

De homens
imolados a nada,

vieram frases
sem sentido,

flores da sevícia embrulhadas
no papel ruim dos jornais.

Ainda palavras.
Mas nunca tão duras.

Dei a elas esta folha
- a mais alva que pude.

(Eucanaã Ferraz)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Agora...



Agora vou embrulhar minha angústia dentro do meu lenço.
Vou amassá-la numa bola apertada.
Vou levar minha angústia e depositá-la nas raízes sob as faias.
Vou examiná-la, pegá-la entre meus dedos.
Não me encontrarão.
Morrerei lá.


(Virginia Woolf)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

é tempo de marear...



Despedida


Adeus,

que é tempo de marear!

Por que procuram pelos olhos meus

rastros de choro,

direções de olhar?

Quem fala em praias de cristal e de ouro,

abrindo estrelas nos aléns do mar?

Quem pensa num desembarcadouro?

- É hora, apenas, de marear.

Quem chama o sol?

Mas quem procura o vento?

e âncora? e bússola? e rumo e lugar?

Quem levanta do esquecimento

esses fantasmas de perguntar?

Lenço de adeuses já perdi...

Por onde?

- na terra, andando, e só de tanto andar...

Não faz mal. Que ninguém responde

a um lenço movido no ar...

Perdi meu lenço e meu passaporte

- senhas inúteis de ir e chegar.

Quem lembra a fala da ausência

num mundo sem correspondência?

Viajante da sorte na barca da sorte,

sem vida nem morte...

Adeus,

que é tempo de marear!


(Cecília Meireles)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

e transitória insônia...



Catacumbas


Somos argila, noite

onde os dedos se afundam,

hemorragia de espantoso silêncio

nas galerias do corpo.


O resto,

é pura perda

e transitória insônia.


(Hélio Pelegrino)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Catar os cacos...


Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto..............- como se fosse flor.
Catar os restos e ossos
da utopia..............como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculos
e aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.
Catar a verdade contida
em cada concha da mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo.............- do dia cão.
Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao ventos
e pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionísio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado.............- como era antes.
Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça?
..........Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção......
Cacos de mim.....
Cacos do não.....
Cacos do sim.....
Cacos do antes.....
Cacos do fim.
Não é dentro......
nem fora
embora seja dentro e fora.....
no nunca e a toda hora
que violento....o sentido nos deflora.
Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.

(Affonso Romano de Sant'Anna)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012



(e eu que achei que tinha 'muito' para poder compartilhar - escuto que eu não tenho nada para poder dar...)


perder o olhar pode ser uma poesia

uma nostalgia do futuro

sento e o vento que balança...

o trigo com delicadeza

é o mesmo que traz

os temporais

saudades demais

do que nunca

se teve


(Cáh Morandi)