quinta-feira, 30 de abril de 2009

Cai o fim de mais um dia...


(...)
Cai leve, fim do dia certo, em que os que crêem e erram se engrenam no trabalho do costume,
e têm, na sua própria dor, a felicidade da inconsciência.
Cai leve, onda de luz que cessa, melancolia da tarde inútil,
bruma sem névoa que entra no meu coração.
Cai leve, suave, indefinida palidez
Lúcida e azul da tarde aquática - leve, suave, triste sobre a terra simples e fria.
Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada, tédio sem torpor.
Bernardo Soares

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra

Toda a vida da alma humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espectáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.
Estas páginas, em que registo com uma clareza que dura para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto, e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou?Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pequeno pormenor me oprime como uma carta de adeus. Sinto-me constantemente numa véspera de despertar, sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de conclusões.
De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se de umas sensações para outras como uma sucessão de nuvens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objecto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém.
Há, algures, um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.
Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…
Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada…
(Bernando Soares - Livro do Desassossego)

terça-feira, 28 de abril de 2009

Cansei...

"Defendamo-nos de dizer que a morte é o contrário da vida.
A vida não passa de uma variedade de morte, e uma variedade muito rara."
(Friedrich Nietzsche)

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Vento, folhas e areia



Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,

Não achas, soprando por tanta solidão,

Deserto, penhasco, coval mais vazio

Que o meu coração!

Indômita praia, que a raiva do oceano

Faz louco lugar, caverna sem fim,

Não são tão deixados do alegre e do humano

Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza,

Só têm a tristeza que a gente lhes vê

E nisto que em mim é vácuo e tristeza

É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!

Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,

Que rasgas os robles — teu pulso divida

Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia,

A alma que tenho pudesses levar -

Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia

De eu ter que pensar!

(Fernando Pessoa)

domingo, 26 de abril de 2009

que o domingo seja um vasto campo de girassóis...


"o Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundezas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, muidinho, não se importando demais com coisa nenhuma."
(Guimarães Rosa)

sábado, 25 de abril de 2009

Porto Solidão

Porto Solidão
Jessé
Composição: Zeca Bahia e Gincko

Se um veleiro
Repousasse
Na palma da minha mão
Sopraria com sentimento
E deixaria seguir sempre
Rumo ao meu coração...

Meu coração
A calma de um mar
Que guarda tamanhos segredos
Diversos naufragados
E sem tempo...

Rimas, de ventos e velas
Vida que vem e que vai
A solidão que fica e entra
Me arremessando
Contra o cais...

Rimas!
A solidão que fica e entra
Me arremessando
Contra o cais...

sexta-feira, 24 de abril de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

E saiam todos os sóis...entre o real e o sonho...


Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito
...
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
...
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos
...
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem
...
(Alexandre O´Neill)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Somos um cavalo nadando!


Todos, aviso: todos!, pedem para que me livre da culpa. Assuma meus atos. Não transfira a responsabilidade.

Todos, aviso: todos!, são desencanados, leves, budistas. Ou tentam parecer que se entendem.
A culpa estragaria, a culpa imobilizaria, a culpa nos induziria a enganos. O problema é sempre da culpa.

Não desperdiço, não jogo fora a minha culpa. Minha culpa é pai e mãe, é Espírito Santo. Família é boa para gerar traumas, aproveitemos, traumas são as únicas lembranças que não serão esquecidas.

A culpa nos torna atentos, missionários dos cílios. O homem só é romântico com a culpa. As flores criminosas crescem à vontade na ponta de seus dedos. Homem culpado é humilde e amoroso como um chapéu na cadeira, um avental no gancho. O sexo é muito mais intenso e voraz com a culpa. Trepa-se como se fosse a última vez sempre. Os pais pedem desculpas pela culpa. Largam a arrogância dos castigos pela audição dos pés. Os bichos aprendem seus hábitos pela culpa. Trocam o cativeiro pela obediência.

Culpa, ó palavra bonita, gostosa de se repetir, dádiva próxima do perdão.
Culpa é voltar para o lugar que nascemos. É se arrepender antes de fazer e continuar fazendo. Uma teimosia que nos leva à perfeição dos erros. Um erro perfeito é virtude. A culpa, não consigo parar de repeti-la, não nos resolve, é um tratamento sincero. Não nos salva, é uma verdade médica. Percebemos que sempre nos enganaremos. Mas é se enganar com gosto, com vontade.

Quem procura se curar é careta. A culpa não tem cura, é libertina, libertadora, retirar adrenalina de todo pecado. Ou alguém nunca se sentiu culpado por nascer? Culpado por amar? Culpado por ser sincero? Culpado pelo talento ou pela falta de talento?

Não pretendo pagar a conta sozinho. Sem culpa, eu me isolo, eu me vejo independente e pronto. Consumido. Não há vela que não se derreta por todos os lados. Culpa é minha crisma, minha primeira comunhão, a alegria de saber que Deus está me enxergando.
Culpa me limita, me põe a recuar na raiva, a desistir da arma e da faca, me violenta antes que cometa violências. Ninguém mata o outro com culpa. A culpa é civilizada. Que tenha culpa antes do que depois.

Sem culpa, não existe vida eterna. É vassoura e cinzas. Uma pazinha e acúmulo de asas transparentes na horta.

Sem culpa, não existe literatura, sequer leitor angustiado pelo final da história.
Aproximem-se, fiéis, da culpa. Para comprar um apartamento, dependo de fiador. A culpa é o fiador da memória. A conversa fiada do medo. Não bancarei minhas falhas, não sumirei com a nota fiscal da taverna. Se não gozar, coloque a culpa nela. É melhor do que arrebentar de estresse. Se não for feliz, coloque a culpa nele. É melhor do que acumular pedras nos rins. Não tome as culpas para si, não seja egoísta. Doe sua culpa para doer menos. A culpa é contagiosa.

Não procure manter a pose de esclarecido, centrado, tranqüilo. A teoria não prevê um cavalo atravessando um rio. Somos um cavalo nadando.

(Fabrício Carpinejar)

terça-feira, 21 de abril de 2009

Amanheci com Drummond...


Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.
Admitir que nos deixamos levar, mais uma vez, isso é difícil.
(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Quando estamos à margem...


Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.

(Bernardo Soares, in Fernando Pessoa)

sábado, 18 de abril de 2009

Passamos a vida


“Todo este mundo quotidiano e visível, toda esta gente que bóia à superfície da vida, todas estas coisas que constituem os nomes e os feitos da história não são mais que erro e ilusão. Somos todos, não agentes, senão agidos - títeres de maiores que nós. Todo o nosso orgulho de conscientes e a nossa soberba de racionais são o títere que se orgulha de seus gestos. Na verdade o combate é aqui, mas não é nosso; não é conosco, somos nós. Não somos atores de um drama: somos o próprio drama - a antestreia, os gestos, os cenários. Nada se passa conosco: nós é que somos o que se passa”

Fernando Pessoa.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Remei...


... remei a respiração e fui escolhendo os quadros no museu de minha melancolia. Encontrei novamente a coleção privada das minhas falhas, que arrematei num leilão e não partilho com nenhum estudioso da arte ou da dor. Atravessei as salas quietas de meus ossos, o choro mudo do ventilador, reconhecendo que a visitação é sempre desacompanhada no fundo da memória.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Sonhos das crianças e nossas alegrias...

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.
E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...
E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
(Fernando Pessoa in "Poesias Inéditas")

terça-feira, 14 de abril de 2009

Não é preciso dizer mais nada...




Minha alma tem o peso da luz.

Tem o peso da música.

Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.

Tem o peso de uma lembrança.

Tem o peso de uma saudade.

Tem o peso de um olhar.

Pesa como pesa uma ausência.

E a lágrima que não se chorou.

Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.

(Clarice Lispector)

domingo, 12 de abril de 2009

Para um final de domingo com clima de outono



Conheço minhas pegadas, de tanto ir e vir.
Às vezes pisam fundo
como carregassem o peso do mundo;
às vezes ficam amassadas
sob o descuido das outras pegadas.
Sobre elas, a lua nova desdobra sua saia
em cena de nudez no chão da praia.
Só perco meus passos na maré cheia:
essa mania do mar de tirar seus sapatos sobre a areia.
Conheço bem minhas pegadas.
Sou capaz de identificá-las em qualquer lugar.
Se ao menos eu soubesse aonde vão me levar...
[Flora Figueiredo - Pés, in Chão de Vento]

Para cumadi ariANA...

FELIZ ANIVERSÁRIO!

Tons... lembranças... saudades...



Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!...
E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar?
Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!

Mário Quintana

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Que seja leve...


No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo,
um carinho no momento preciso;
o folhear de um livro de poemas;
(um doce sorriso);
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...
Mário Quintana

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Silêncio costurando o tempo...


A missanga, todos a veem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo.
Mia Couto

domingo, 5 de abril de 2009

Quase regressando ... para contar e recordar...


"A vida não é o que a gente viveu,
E sim o que a gente recorda,
E como recorda para contá-la..."


(Gabriel Garcia Marquez)

sábado, 4 de abril de 2009

Guardamos lembranças no tempo


Estou amando essas flores,
sem lhes saber o nome
isso não é justo, nem suficiente.
Sei-lhes o perfume,
vejo pequenas abelhas que as circundam
e delas se alimentam
sem lhes indagar sequer o nome.
Inominadas,
como apreendê-las no poema?
Delas guardarei no tempo
certa cor, certo aroma, certa forma,
como certas pessoas que por mim passaram
- inalcançáveis -
embora deixassem nos meus olhos
o mesmo inominado aroma.
(Affonso Romano de Sant'Anna)

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Lá fora a rua vazia chora...


silêncio! hoje o chão, o mar, o vento
me dizem: faça silêncio!
ssh! nada de conversa nesse momento,
minha alma ouve pequenas vozes,
quase silenciosas,
hoje é o dia de sentir, não de ouvir,
e o que sinto? não distingo alegria
da tristeza, o silêncio ri e chora,
duro como um martelo
enfio pregos nos meus dedos,
chão, mar, vento pedem silencio
o martelo enfia o ultimo prego

Iosif Landau

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Somos feitos de sonhos...




Matar o sonho é matarmo-nos.
É mutilar a nossa alma.
O sonho é o que temos de realmente nosso,
de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso.
(Fernando Pessoa)