sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde

via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de

fininho dolorosamente dobradas as costas e

segurando o queixo e a boca com uma das mãos.

Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente,

mas de maneira curta, curta, entendem? Eu

estava dando gargalhadas e agora estou

sofrendo nosso próximo falecimento, minhas

gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento

meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó

extrema do rato que se fere no porão, ai que

outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano

torpor me atira de braços abertos sobre as ripas

do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera

dividir o corpo em heterônimos - medito aqui

no chão, imóvel tóxico do tempo.

(Ana Cristina César)

terça-feira, 23 de novembro de 2010




O pó se acumula todos os dias sobre as emoções

(Caio Fernando de Abreu)

domingo, 21 de novembro de 2010

de onde vêm os ecos de domingo?

Agora é dia feito e de repente de novo domingo em erupção inopinada. Domingo é dia de ecos quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas - de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco.

(Clarice Lispector)

sábado, 20 de novembro de 2010

outra vez os dias...

Foi esta, portanto a furtiva impureza que herdamos

sem saber como, este espaço, este canto assim vago,

estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,

estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas

de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos

rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés

onde nos recompomos das derrotas, este modo

de despejar os cinzeiros, estas tardes, este aclarar

da garganta para nada e os rebuçados amarelos

e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons

das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos

raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,

e os dias sempre os dias outra vez os dias.

(Miguel Cardoso)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Enquanto isto os relógios se vão...


Cada pedaço de mim
sabe o inferno que é ser
sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios,
ser luz na escuridão das manhãs.

Cada todo de ti sabe a delícia
que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas,
ser azul no fundo do mar.

Cada suspiro de nós sabe
a angústia que é ser só um
na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina,
ser ninguém na roda da vida.

Enquanto isso os relógios se vão,
e vêem aqueles que sabem
o que é apenas ser na
ausência do nada.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Estava devendo esta divulgação


O Cio da Terra, um documentário que remexe a história recente. A produção de 42 minutos reúne depoimentos tendo como referência o evento “Cio da Terra” que uniu 15 mil jovens, em Caxias do Sul, RS em 1982. Foram três dias de música e encontros sócio-políticos, numa época ainda impactada pela ditadura militar. Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Eduardo Bueno, Jorge Mautner, Giba Assis Brasil Ednardo entre outros participam com depoimentos.
O documentário também foi construído com registros de imagens recuperadas de um filme super-8 realizado durante o evento e material de arquivo do período.

O Cio da Terra teve produção e direção de Cacá Nazario roteiro e co-direção de Eber Marzulo , fotografia de Bruno Polidoro e montagem de Denise Marchi e Rogério Ferrari. O projeto foi financiado com recursos do Fumproarte e do Banrisul. Cacá Nazario dirigiu ainda Justiça infinita (2002), Histórias Curtas - Descompassado coração (2003), Up Grade do Macaco (2005) Júlia (2006) e atualmente está realizando com o cineasta Bruno Polidoro o documentário Sobre 7 Ondas Verdes Espumantes (Um filme através da obra e vida de Caio Fernando Abreu).
do cineasta Beto Rodrigues. A mediação ficará por conta do jornalista Roger Lerina.

Cio da Terra, de Cacá Nazário. Brasil, 2010. Duração: 42 minutos. Colorido. Exibição em DVD. Classificação indicativa: livre.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Imposturas & Hipocrisias

Agora não se fala mais

toda palavra guarda uma cilada

e qualquer gesto é o fim

do seu início;

agora não se fala nada

e tudo é transparente em cada forma

qualquer palavra é um gesto

e em sua orla

os pássaros de sempre cantam assim:

do precipício:

a guerra acabou

quem perdeu agradeça

a quem ganhou.

não se fala. não é permitido

mudar de idéia. é proibido.

não se permite nunca mais olhares

tensões de cismas crises e outros tempos

está vetado qualquer movimento

do corpo ou onde que alhures.

toda palavra envolve o precipício

e os literatos foram todos para o hospício.

e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.

agora não se fala nada, sim. fim, a guerra

acabou

e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

Agora não se fala nada

e tudo é transparente em cada forma

qualquer palavra é um gesto

e em sua orla

os pássaros de sempre cantam

nos hospícios.

Você não tem que me dizer

O número do mundo deste mundo

Não tem que me mostrar

A outra face

Face ao fim de tudo

Só tem que me dizer

O nome da república ao fundo

O sim do fim

Do fim de tudo

E o tem do tempo vindo;

Não tem que me mostrar

A outra mesma face ao outro mundo

(não se fala. não é permitido:

mudar de idéia. É proibido

não se permite nunca mais olhares

tensões de cismas crises e outros tempos

está vetado qualquer movimento.

(Torquato Neto)

domingo, 14 de novembro de 2010

"Dançe, dance Zarité, porque escravo que dança é livre...enquanto dança."

"A música é um vento levado pelos anos,
pelas lembranças e
pelo temor,
esse animal preso que carrego dentro de mim."

(Isabel Allende - A ilha Sob o Mar)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim"

(Fernando Pessoa)

sábado, 6 de novembro de 2010

Tarde de sábado


"Me veio numa tarde de sábado. Não de agosto, como os antigos, embora comigo mesmo costumasse repetir que os agostos haviam invadido setembro, avançado sobre outubro até descobrir o novembro que ia em meio. Me veio numa tarde de sábado, em novembro. Em comum com os agostos de antes, a chuva. E bateu à porta, essa mesma que pintei inteira de amarelo para dar uma ilusão de luz às sombras desta casa. Tenho que ser preciso, tenho que refazer, e para isso preciso contar o que fazia antes.

Eu pintava os vidros das janelas com arabescos coloridos das tintas que saio às vezes para comprar. A casa é um pequeno sobrado com poucas vidraças, numa ruazinha toda feita de sobrados pequenos apertados entre outros sobrados pequenos, portanto, não há muitas vidraças, já que os dois lados estão inteiramente comprimidos entre duas outras casas. As vidraças da frente, na parte de baixo apenas uma janela e uma porta, dessas com um retângulo vertical de vidro, para que se possa ver o rosto de quem chega, antes de abri-la, estavam completamente pintadas. São formas quase sempre abstratas, uns círculos, uns triângulos, só de vez em quando intercaladas por outras mais precisas, um olho aberto, um peixe, uma estrela, em tons principalmente de roxo e amarelo.

Gosto de permanecer ali na sala em raros dias iluminados, sobretudo ao cair da tarde, quando os últimos raios de sol varam os vidros para espalhar cores sobre os objetos. São muitos objetos, tantos que freqüentemente penso que daqui a algum tempo será difícil movimentar-me aqui dentro, no espaço que se reduz, quase todos feitos por mim mesmo. Como já disse, pouco saio, uma certa renda sobre alguns imóveis deixados por meus pais me permite passar aqui dias inteiros, fazendo coisas com as mãos. Descobri faz algum tempo que as mãos se opõem à cabeça, e quando você movimenta aquelas, esta pode parar. Não sei se é uma grande descoberta, talvez não, mas de qualquer forma gosto quando a cabeça pára o maior tempo possível, caso contrário enche-se de temores, suspeitas, desejos, memórias e todas essas inutilidades que as cabeças guardam para deixar vir à tona quando as mãos estão desocupadas. Ocupo-as então, fazendo coisas que depois disponho pelos cantos. [...]".