sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

MMXL

Se as pessoas fizessem aniversário no mesmo dia?

Seria um caos, é o Ano Novo.

O Ano Novo transmite a sensação de que somos aniversariantes. Todos. Temos que lembrar de todos. Todos aguardam um aperto, uma lembrança, um sinal elétrico de nossa voz. Não só esperar os cumprimentos, ir atrás da memória, de personagens secundários e enredos esboçados, formar sinapses rápidas e obedientes para produzir mensagens e participar de uma euforia que tudo o que não aconteceu antes vai acontecer agora. É vida nova, idade nova, ou coma profundo.

Antes de sair para a festa, fiquei um tempão escolhendo a cor de minha cueca, é uma operação patética, perguntei até para meus filhos. Um pai perguntando qual a cor de sua cueca aos filhos deve gerar anos de terapia. Branca, vermelha ou amarela? Não tenho amarela, fui de branca, ainda desconfiado que não optei pela mais certa e desprezei Oxum.

Sou tomado por uma falta de opinião, não consigo me agradar porque cumprirei mandamentos e pequenas regras que não sei de onde surgiram. A série de simpatias me torna antipático. Confiro as previsões do ano com interesse pessoal. Exercito a numerologia cabalística. Convoco os deuses do candomblé com nervosismo de um impostor, pois sequer pisei num terreiro para decorar suas influências.

É um excesso de superstições para uma noite. A última vez em que participei de uma gincana foi na sétima série e tropecei na corrida de sacos de estopa na reta final, desencadeando a derrota de minha turma.

Não existe escapatória. Ao fugir das tarefas, posso ser amaldiçoado e enfrentar o pior ano de minha vida.

Para me prevenir dos riscos, entro na roda. Estourar balão com aquilo que não desejo de jeito nenhum (sentei fácil em cima dos desaforos), soltar balão para o enxame de estrelas com aquilo que desejo de todos os jeitos (não havia vento e joguei vôlei sozinho e desesperado com as cercas dos vizinhos), comer lentilha (abomino esse feijão atrofiado), tomar champanhe cuidando com o teor alcoólico (já que voltaria dirigindo), completar sexo oral com as uvas sem cuspir as sementes.

No Ano Novo, nossos conhecidos aniversariam. O mundo inteiro de nossas relações volta-se ameaçador de ternura. Isso é um problema. Nossa agenda desenrola-se à frente como um mapa de uma cidade desconhecida. A Lista Telefônica é a Bíblia de capa colorida. Nada é desprezível, nenhum telefone, nenhum paradeiro. Uma enxurrada milenar de nomes e de adormecidas orfandades.

Condenados a reconhecer imediatamente alguém que conversamos num bar ou consagrar quem partilhamos uma amizade de duas décadas. Não importa o grau de afinidade, está de aniversário também. Merece nosso entusiasmo.

Não há como abraçar o imponderável. É como abraçar um baobá, a circunferência da árvore pedindo mais e mais braços emprestados.

Submeto-me a uma expectativa de reconhecimento que não tem fim. Distribuir paz, alegria, saúde, sucesso. Brindar com o copo cheio, transbordar de linho. Não esquecer ninguém. Ninguém.

E, no dia seguinte, acordar se desculpando, com o sentimento de culpa por ter se esquecido.

(Fabrício Carpinejar)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

do nascer do 2011




CONTOS DO NASCER DA TERRA

Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa. Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou:
—Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.

(Mia Couto)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Sobretudo aos domingos


Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

(Caio Fernando de Abreu)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

silêncio das tormentas


esta é canção de ferir e chorar
está é canção singela de partir
o ruído da chuva nas janelas
nada que ler e dormir

esta é uma canção de sentinela
e as verdades provisórias
o pasto, a neve, a glória

esta é canção de sortilégio-sacrifício
como queiras
é canção de bem-tratar e maltratar

é canção de funeral
de aves magras nas gambiarras
sem porvir ou provisão

para sentir-se só
sentir-se doente em cama de hospital
caminhar rente ao lodo e a chama
fechar os olhos e delir

esta é uma canção sem armistício
de patíbulos e de quintais
em que sentir-se longe
lá onde o horizonte se desfaz
esta é uma canção de nunca mais

(meu bem, me diga
o silêncio das tormentas
vai passar?)

(Marco de Menezes)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Se eu nem sei onde estou?

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

(Cecília Meireles)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Felicidades

"Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. Felicidade se acha é só em horinhas de descuido."
(Guimarães Rosa)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Chove...

Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te de meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuto, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010


E lembro daquela história zen, o rei que pediu ao monge um talismã que o protegesse de qualquer mal. O monge deu ao rei um anel, com a recomendação de abri-lo só em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo foi cercado pelos inimigos, e o rei encurralado numa torre. Ele abriu o anel. Dentro, havia um papelzinho dobrado. Ele abriu o papelzinho e leu uma frase assim: “Isto também passará”.

(Caio Fernando de Abreu)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Condição Humana

pequenas multidões
no desamparo das horas
sumidas

pequenos desastres
e uma extrema coragem

(Lau Siqueira)


domingo, 12 de dezembro de 2010

E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta, é a glória própria de minha condição. A desistência é uma revelação.

(Clarice Lispector)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Centenário de Noel Rosa

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

(Filosofia - Noel Rosa)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

senão uma despedida...

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

(...)

Fernando Pessoa - Tabacaria

domingo, 5 de dezembro de 2010

É preciso não ter filosofia nenhuma

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

(Fernando Pessoa)

sábado, 4 de dezembro de 2010

Cai a noite...

O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.

Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?

(Cecília Meireles)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão, nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer relacionamento: amizade, família, trabalho, amor somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil. Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos, teimamos em pensar que ainda há remédio: um pobre band-aid serviu. Ou um passe de mágica que nos tornasse menos expostos, menos humanos.

(Lya Luft)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde

via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de

fininho dolorosamente dobradas as costas e

segurando o queixo e a boca com uma das mãos.

Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente,

mas de maneira curta, curta, entendem? Eu

estava dando gargalhadas e agora estou

sofrendo nosso próximo falecimento, minhas

gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento

meio nojento, meio ocasional, sinto uma dó

extrema do rato que se fere no porão, ai que

outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano

torpor me atira de braços abertos sobre as ripas

do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera

dividir o corpo em heterônimos - medito aqui

no chão, imóvel tóxico do tempo.

(Ana Cristina César)

terça-feira, 23 de novembro de 2010




O pó se acumula todos os dias sobre as emoções

(Caio Fernando de Abreu)

domingo, 21 de novembro de 2010

de onde vêm os ecos de domingo?

Agora é dia feito e de repente de novo domingo em erupção inopinada. Domingo é dia de ecos quentes, secos, e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas - de onde vêm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco.

(Clarice Lispector)

sábado, 20 de novembro de 2010

outra vez os dias...

Foi esta, portanto a furtiva impureza que herdamos

sem saber como, este espaço, este canto assim vago,

estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,

estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas

de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos

rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés

onde nos recompomos das derrotas, este modo

de despejar os cinzeiros, estas tardes, este aclarar

da garganta para nada e os rebuçados amarelos

e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons

das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos

raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,

e os dias sempre os dias outra vez os dias.

(Miguel Cardoso)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Enquanto isto os relógios se vão...


Cada pedaço de mim
sabe o inferno que é ser
sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios,
ser luz na escuridão das manhãs.

Cada todo de ti sabe a delícia
que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas,
ser azul no fundo do mar.

Cada suspiro de nós sabe
a angústia que é ser só um
na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina,
ser ninguém na roda da vida.

Enquanto isso os relógios se vão,
e vêem aqueles que sabem
o que é apenas ser na
ausência do nada.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Estava devendo esta divulgação


O Cio da Terra, um documentário que remexe a história recente. A produção de 42 minutos reúne depoimentos tendo como referência o evento “Cio da Terra” que uniu 15 mil jovens, em Caxias do Sul, RS em 1982. Foram três dias de música e encontros sócio-políticos, numa época ainda impactada pela ditadura militar. Nélson Coelho de Castro, Nei Lisboa, Eduardo Bueno, Jorge Mautner, Giba Assis Brasil Ednardo entre outros participam com depoimentos.
O documentário também foi construído com registros de imagens recuperadas de um filme super-8 realizado durante o evento e material de arquivo do período.

O Cio da Terra teve produção e direção de Cacá Nazario roteiro e co-direção de Eber Marzulo , fotografia de Bruno Polidoro e montagem de Denise Marchi e Rogério Ferrari. O projeto foi financiado com recursos do Fumproarte e do Banrisul. Cacá Nazario dirigiu ainda Justiça infinita (2002), Histórias Curtas - Descompassado coração (2003), Up Grade do Macaco (2005) Júlia (2006) e atualmente está realizando com o cineasta Bruno Polidoro o documentário Sobre 7 Ondas Verdes Espumantes (Um filme através da obra e vida de Caio Fernando Abreu).
do cineasta Beto Rodrigues. A mediação ficará por conta do jornalista Roger Lerina.

Cio da Terra, de Cacá Nazário. Brasil, 2010. Duração: 42 minutos. Colorido. Exibição em DVD. Classificação indicativa: livre.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Imposturas & Hipocrisias

Agora não se fala mais

toda palavra guarda uma cilada

e qualquer gesto é o fim

do seu início;

agora não se fala nada

e tudo é transparente em cada forma

qualquer palavra é um gesto

e em sua orla

os pássaros de sempre cantam assim:

do precipício:

a guerra acabou

quem perdeu agradeça

a quem ganhou.

não se fala. não é permitido

mudar de idéia. é proibido.

não se permite nunca mais olhares

tensões de cismas crises e outros tempos

está vetado qualquer movimento

do corpo ou onde que alhures.

toda palavra envolve o precipício

e os literatos foram todos para o hospício.

e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.

agora não se fala nada, sim. fim, a guerra

acabou

e quem perdeu agradeça a quem ganhou.

Agora não se fala nada

e tudo é transparente em cada forma

qualquer palavra é um gesto

e em sua orla

os pássaros de sempre cantam

nos hospícios.

Você não tem que me dizer

O número do mundo deste mundo

Não tem que me mostrar

A outra face

Face ao fim de tudo

Só tem que me dizer

O nome da república ao fundo

O sim do fim

Do fim de tudo

E o tem do tempo vindo;

Não tem que me mostrar

A outra mesma face ao outro mundo

(não se fala. não é permitido:

mudar de idéia. É proibido

não se permite nunca mais olhares

tensões de cismas crises e outros tempos

está vetado qualquer movimento.

(Torquato Neto)

domingo, 14 de novembro de 2010

"Dançe, dance Zarité, porque escravo que dança é livre...enquanto dança."

"A música é um vento levado pelos anos,
pelas lembranças e
pelo temor,
esse animal preso que carrego dentro de mim."

(Isabel Allende - A ilha Sob o Mar)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim"

(Fernando Pessoa)

sábado, 6 de novembro de 2010

Tarde de sábado


"Me veio numa tarde de sábado. Não de agosto, como os antigos, embora comigo mesmo costumasse repetir que os agostos haviam invadido setembro, avançado sobre outubro até descobrir o novembro que ia em meio. Me veio numa tarde de sábado, em novembro. Em comum com os agostos de antes, a chuva. E bateu à porta, essa mesma que pintei inteira de amarelo para dar uma ilusão de luz às sombras desta casa. Tenho que ser preciso, tenho que refazer, e para isso preciso contar o que fazia antes.

Eu pintava os vidros das janelas com arabescos coloridos das tintas que saio às vezes para comprar. A casa é um pequeno sobrado com poucas vidraças, numa ruazinha toda feita de sobrados pequenos apertados entre outros sobrados pequenos, portanto, não há muitas vidraças, já que os dois lados estão inteiramente comprimidos entre duas outras casas. As vidraças da frente, na parte de baixo apenas uma janela e uma porta, dessas com um retângulo vertical de vidro, para que se possa ver o rosto de quem chega, antes de abri-la, estavam completamente pintadas. São formas quase sempre abstratas, uns círculos, uns triângulos, só de vez em quando intercaladas por outras mais precisas, um olho aberto, um peixe, uma estrela, em tons principalmente de roxo e amarelo.

Gosto de permanecer ali na sala em raros dias iluminados, sobretudo ao cair da tarde, quando os últimos raios de sol varam os vidros para espalhar cores sobre os objetos. São muitos objetos, tantos que freqüentemente penso que daqui a algum tempo será difícil movimentar-me aqui dentro, no espaço que se reduz, quase todos feitos por mim mesmo. Como já disse, pouco saio, uma certa renda sobre alguns imóveis deixados por meus pais me permite passar aqui dias inteiros, fazendo coisas com as mãos. Descobri faz algum tempo que as mãos se opõem à cabeça, e quando você movimenta aquelas, esta pode parar. Não sei se é uma grande descoberta, talvez não, mas de qualquer forma gosto quando a cabeça pára o maior tempo possível, caso contrário enche-se de temores, suspeitas, desejos, memórias e todas essas inutilidades que as cabeças guardam para deixar vir à tona quando as mãos estão desocupadas. Ocupo-as então, fazendo coisas que depois disponho pelos cantos. [...]".

domingo, 31 de outubro de 2010

“Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor”

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Puzzle de interesses

Demissão

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.
(José Saramago)




sábado, 23 de outubro de 2010

Movimentos

Pela fresta observo a dança das cores,

nos vidros recortados.

Separam-se, aglutinam-se, desenham maravilhas

Como se bailassem calçando sapatilhas.

A cada movimento, uma surpresa,

a mesma flor concebida com destreza,

em seguida se espalha e se desfaz.

Por trás do seu processo giratório,

o caleidoscópio avisa:

a forma fugaz e imprecisa

e o colorido de hoje

é provisório.

(Flora Figueiredo)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Um dia sem tempo nem substância...



Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma. Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as idéias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por trás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado. O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — o da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos. Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se a cela é tudo? E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 19 de outubro de 2010



Acordei de um sonho estranho
Um gosto, vidro e corte
Um sabor de vida e morte

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Final de segunda-feira

A noite me pinga
uma estrela no olho
e passa.

(Paulo Leminski)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Quisera o canto jubiloso
que corresse por dentro de minhas palavras.
Como um rio destampado corresse para os campos.

(Manoel de Barros)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010


Talvez emudecer seja mais imprescindível
que parir palavras.

(Karen Debértolis)

domingo, 3 de outubro de 2010

Democracia

Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.


(Bertolt Brecht)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Tudo isto é estrangeiro, como tudo...


Tudo isso, seja o que for que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Só viver, não é?

Tudo isso dói.
Mas eu sei que passa que se está sendo assim é porque deve ser assim, e virá outro ciclo, depois.
Para me dar força, escrevi no espelho do meu quarto: “Ta certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?” É o que estou tentando vivenciar.
Certo, muitas ilusões dançaram - mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo, eu faço força para manter algumas esperanças acesas, como velas. Também não quero dramatizar e fazer dos problemas reais monstros insolúveis, becos-sem-saída.
Nada é muito terrível.viver,não é?
A barra mesmo é ter que estar vivo e ter que desdobrar, batalhar um jeito qualquer de ficar numa boa. O meu tem sido olhar pra dentro, devagar, ter muito cuidado com cada palavra, com cada movimento, com cada coisa que me ligue ao de fora. Até que os dois ritmos naturalmente se encaixem outra vez e passem a fluir.
Porque não estou fluindo.

(Caio Fernando de Abreu)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Salve a cultura!

Salve a Casa do Caio Fernando Abreu

pela memória do escritor gaúcho!

Em Porto Alegre, um movimento liderado por Andréa Beheregaray - peleia - pela preservação da casa onde morou o escritor Caio Fernando Abreu no bairro Menino Deus. Seja um@ apoiador@ para transformar a casa num centro de cultura do acervo do escritor.

Entre na página http://www.peticao.com.pt/caio-fernando-abreu e assine a petição.



Distribuo em doses certas
esta dor que me atravessa...

(Marize Castro)

sábado, 25 de setembro de 2010

Que é sem fim...

Olhando meu navio
O impaciente capataz
Grita da ribanceira
Que navega pra trás
No convés, eu vou sombrio
Cabeleira de rapaz
Pela água do rio
Que é sem fim
E é nunca mais

(Dominguinhos - Chico Buarque)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010



Perdi-me no entrelaçar-se de malhas.
Entreguei-me no manchar-se de sonhos.
Marquei-me no soluçar-se de perdas.
Sob o peso deste som
um flautim
Sob o som deste peso
uma queda
rachou
a chave
calou
a chuva
barrou
a chama
(chuvisca no centro meu – nenhum grito)

(Ana Cristina César)

domingo, 19 de setembro de 2010

Escutando o mar...


Depois que descobri
que as palavras enviadas pelo vento
tem mais força...
Guardo todas...

(Caio Fernando de Abreu)

sábado, 18 de setembro de 2010

Por certo...

"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia."

(João Guimarães Rosa)

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Último poema



Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

(Manoel Bandeira)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Ontem choveu no futuro


Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores.
Pacus comem frutas de carandá nos cachos.

(Manoel de Barros)

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Se eu...



Se eu me sentir sono,
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,
Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça,
Não num chão qualquer,
Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que bebamos,
A sombra da paz.
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

De cada dia

De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria;

em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã.

(Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Continuar...

Substituímos expressões fatais como “não resistirei”

por outras mais mansas,

como “sei que vai passar”.

Esse é o nosso jeito de continuar.

(Caio Fernando Abreu)

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Processos & Processos


Lembranças do que disse:

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas,
que já têm a forma do nosso corpo,
e esquecer os nossos caminhos
que nos levam sempre aos mesmos lugares.
É o tempo da travessia e,
se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre,
à margem de nós mesmos.
(Fernando Pessoa)

O que foi dito na nova travessia:

Em vez de serem apenas livres,

esforcem-se para criar um estado de coisas

que liberte a todos.

(Bertold Brecht)