quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Viagem



Era um pássaro triste.
Andorinha exaurida,
A viajar para longe.
Em suas asas tremia
Um prenúncio de morte.

A árvore acenou da distância
Um fraterno chamado.

Repousou a andorinha
E sonhou longamente,
Acordada.
E foi, aquele sonho, a vida.

(Helena Kolody)

terça-feira, 29 de setembro de 2009



Eu sei criar silêncio.
É assim: ligo o rádio bem alto - então de súbito desligo.
E assim capto o silêncio.
Silêncio estelar.
O silêncio da lua muda.
Pára tudo: criei o silêncio.
No silêncio é que mais se ouvem os ruídos.
Entre as marteladas eu ouvia o silêncio.

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009






Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo não são mais claros do que os sonhos
São obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.
Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.
Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.

(Fernando Pessoa)

A vida é líquida...


Tenho a impressão que a vida,
as coisas foram me levando.
Levando em frente,
levando embora,
levando aos trancos,
de qualquer jeito.
(Caio Fernando Abreu.)

domingo, 27 de setembro de 2009

Palavras


Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
(Adélia Prado)

sábado, 26 de setembro de 2009

Reverenciando o MAR - Dia Mundial do Mar






O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.
Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.
Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.
Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
ardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado, cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

(Cecília Meireles - Mar Absoluto)





O mar jaz; gemem em segredo os ventos

Em Éolo cativos;

Só com as pontas do tridente as vastas

Águas franze Neptuno;

E a praia é alva e cheia de pequenos

Brilhos sob o sol claro.

Inutilmente parecemos grandes.

Nada, no alheio mundo,

Nossa vista grandeza reconhece

Ou com razão nos serve.

Se aqui de um manso mar meu fundo indício

Três ondas o apagam,

Que me fará o mar que na atra praia

Ecoa de Saturno?

(Ricardo Reis - O Mar Jaz)


Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria...
Ah, eu sonhava ser como tu és.
Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todos;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.
Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
Ar do mar!

(Alfonsina Storni - Diante do Mar)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Discreto



até que foi bem discreto deixando,
ao partir,
intenso muito do seu segredo
nem chegou a tempestade,
esses excessos do vento
foi um corte pequeno
nem dor a mais, nem de menos
foi porque tinha que ir
foi porque tinha que ser
mas está aí a cicatriz
que não deixa mais mentir
se foi ou não foi feliz
(Alice Ruiz)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009



Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

(Mia Couto)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Escrever silêncios - uma questão anárquica



Escrevia silêncios,
noites,
anotava o inexprimível.
Fixava vertigens.
Criei todas as festas,
todos os triunfos,
todos os dramas.
Tentei inventar novas flores,
novos astros,
novas carnes,
novos idiomas.

(Arthur Rimbaud)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Ir, sobretudo, em frente






Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro—e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

(Caio Fernando de Abreu)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009




Não me peçam razões, que não as tenho,

Ou darei quantas queiram: bem sabemos

Que razões são palavras, todas nascem

Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda

A força da maré que me enche o peito,

Este estar mal no mundo e nesta lei;

Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,

Deste modo de amar e destruir;

Quando a noite é de mais é que amanhece

A cor de primavera que há-de vir.


(José Saramago)

domingo, 20 de setembro de 2009

Ensinamentos da vida


1º ensinamento: "Só terás valor enquanto tiveres utilidade"
A Canção do Idiota

Não me incomodam.
Deixam-me ir.
Dizem que não pode acontecer nada.
Ainda bem.
Não pode acontecer nada.
Tudo chega e gira sempre em torno do Espírito Santo, em torno de determinado espírito (tu sabes) — que bem.
Não, realmente não deve pensar-se que haja qualquer perigo nisso.
Sim, há o sangue.
O sangue é o mais pesado.
O sangue é pesado.
Por vezes penso que não posso mais — (Ainda bem.)
Ah, que linda bola;
vermelha e redonda como um Em-toda-a-parte.
Ainda bem que a criastes.
Ela vem quando se chama?
De que estranha maneira tudo se comporta, apressa-se a juntar-se, separa-se nadando: amigável, um pouco vago.
Ainda bem.
(Rainer Maria Rilke)

sábado, 19 de setembro de 2009

... mesmo assim um ímpar - igual



IGUAL - DESIGUAL

Eu desconfiava:todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol sãoiguais.
Todos os partidos políticos são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda são iguais.
Todas as experiências de sexo são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e
todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho ímpar.

(Carlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009



Se chover, então, vidro-me na varanda sem mexer o tronco.
Torço para que a chuva demore.
Não suportaria os conselhos das calhas.

(Fabrício Carpinejar)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009




Matar, a forma
mais alta de amar,
matar em nós a vontade de matar,
voltar a matar a vontade, matar,
sempre, matar,
mesmo que,
para isso,
seja preciso
todo o nosso amar.

(Paulo Leminski)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ouço o tamanho oblíquo de uma folha...




Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

(Manoel de Barros)

terça-feira, 15 de setembro de 2009




O buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí
pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some
a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve
já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada
o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora.

(Arnaldo Antunes)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Hoje - tanto tempo depois...



Hoje – tantos anos depois, neurônios arrebentados de álcool, drogas, insônia, rejeições, e a memória trapaceia, mesmo com a atenção voltada inteira para o centro seco daquilo que era denso e foi-se dispersando aos poucos, como se perdem o tempo e as emoções, poeira varrida, por mais esforços que faça, plena madrugada, sede familiar, telefone – mudo – não consegue lembrar de quase mais nada além disto tudo que tentou ser dito sobre Beatriz ou ele mesmo ou aquilo que agora chama, com carinho e amargura, de: Aquele Tempo. Tempo, faz tanto tempo, repetem – esquece. Continuam a dizer coisas que ele não entende.

(Caio Fernando de Abreu)

domingo, 13 de setembro de 2009

Seguir em frente



Rodai o zodíaco,
fazei girar a rosa-dos-ventos,
sacudi a ampulheta,
gastai calendários,
despojai primaveras e enfeitai outonos,
matai luas e ressuscitai luas,
trazei pessoas,
levai fantasmas,
descei e subi rios,
atravessai a terra em longo e largo,
levantai cidades e castelos de cartas,
misturai as flores dos caleidoscópios,
fechai os olhos,
abri e fechai janelas,
portas,
palavras...
Jogai para longe os vossos sapatos com a poeira de tanto andar,
e os vossos lenços com lágrimas de tanto adeus.

(Cecília Meireles)

sábado, 12 de setembro de 2009

Outra manhã



Repito todas as manhãs,
ao abrir as janelas para deixar
entrar o sol ou o cinza dos dias,
bem assim: que seja doce.
Quando há sol, e esse sol bate
na minha cara amassada do sono
ou da insônia,
contemplando as partículas de poeira soltas no ar,
feito um pequeno universo,
repito sete vezes para dar sorte:
que seja doce que seja doce que seja doce
e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse
o que deverá ser doce,
talvez não saiba responder.
Tudo é tão vago como se fosse nada.
Ninguém perguntará coisa alguma, penso.
Depois continuo a contar para mim mesmo,
como se fosse ao mesmo tempo
o velho que conta e a criança que escuta,
sentado no colo de mim.

(Caio Fernando de Abreu)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Já passou um ano...



A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,eu nem olhava o relógio.
Seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

(Mario Quintana)

Nem todas notícias chegam pessoalmente...



As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam junto formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meias-noites duram menos do que os meios-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas para subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.

...

(Arnaldo Antunes)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009




“É assim que há muito tempo,
... são regidos os destinos políticos.
Política de acaso,
política de compadrio,
política de expediente”

(Eça de Queiroz, “O Distrito de Évora”, 1867).

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Coletivos de nobres falsetes



Quantos falsos
Palavras de pilhéria
Suspiros de lado com palavras-disparates

Quantos falsos
Adulações adocicadas
Protestos ma non troppo
Frases que contém desastres

Quantos falsos
Que gritam corretas atitudes
Que mastigam a sua própria arrogância
E cospem uma fragilidade fake

Quantos falsos
Parecendo vidros transparentes
Com rótulos de instruções serenas
Que espreitam pela queda
O deslize
O tropeço

Quantos falsos
E vão estender a mão
A outra escondida em figas
O sorriso do gato de Alice
Do alto do mais nobre falsete

(Karen Debértolis)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Chegando ao fim



No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Hai Kai




O que faço
o que penso
o que sinto...
Lágrima presa na visão.

domingo, 6 de setembro de 2009




Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

(Álvaro de Campos)

sábado, 5 de setembro de 2009

Como quem, se despedindo, se surpreende...



Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.

(Affonso Romano de Sant´Anna)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

A vida se repete...



" ... faz tanto tempo que invento meus próprios dias.
Preciso começar por algum ponto!..."
(Caio Fernando de Abreu)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Talhar a imaginação



Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nos seres e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Quantos,
Com a charrua,
Sonhos, cidades!
Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo.

(Ricardo Reis)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Vive sem horas...




Vive sem horas.
Quanto mede pesa,
E quanto pensas mede.
Num fluido incerto nexo, como o rio
Cujas ondas são ele,
Assim teus dias vê, e se te vires
Passar, como a outrem, cala.
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Lançado ao vento



A PRIMAVERA

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.