domingo, 29 de maio de 2011

É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo

(Caio Fernando de Abreu)

sábado, 28 de maio de 2011

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Onde mora a saudades...

Fui em busca de vãs utopias.
Lutei contra moinhos de vento.
Dei murros em ponta de faca.

Quis reter o ultimo raio de sol
Do poente...
E a última gota de água
Da chuva...

Guardei vaga-lumes brilhantes
Em redomas translúcidas...
Guardei os girinos do rio
Em aquários de vidro...

Enchi vidros de água
Com giz colorido.
Quis reter suas cores...
Acreditei... que não desbotariam.

Desbotam...

As águas... As roupas no varal... As aquarelas...
Desbotam os olhos... e as fotografias...

Não venci os moinhos de vento...
Tenho as mãos machucadas
Das pontas de faca....

O sol não me deu o seu último raio...
E a chuva negou-me sua última gota...

Vaga-lumes não fizeram brilhar
Minha lanterna mágica...
E os girinos do rio não se tornaram
Peixes coloridos...

Viraram sapos!

Que inda hoje coaxam
No brejo das almas...
Onde mora a saudade...

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 23 de maio de 2011



Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.


(Guimarães Rosa)

domingo, 22 de maio de 2011


Amanhã é outro dia, aprendi isso ontem.

(Caio Fernando Abreu)


sábado, 21 de maio de 2011


Outono: essas folhas que tombam na água parada dos tanques
e não podem sair viajando pelas correntes do mundo...

(Mário Quintana)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Talvez labirintos...

Perdia-se, não eram teias. Nem labirintos. Fazia questão de esclarecer que sua maneira torcida não se tratava de estilo, mas uma profunda dificuldade de expressão. Por esse lado, quem sabe? As emoções e os pensamentos e as sensações e as memórias e tudo isso enfim que se contorce no mais de-dentro de uma pessoa — tinham ângulos? Havia lados, mas como direi? Fragmentava-se: eram os pedaços descosturados de uma colcha de retalhos. Pedia atenção aqui, por favor, mas por gestos, entonações ou simplesmente clima, e regirava: eram os retalhos, um por um, não a colcha, ele.

(Caio Fernando de Abreu)

terça-feira, 17 de maio de 2011



“Gota a gota tomba o silêncio. Condensa-se no telhado da mente e cai por tanques de água abaixo. Para sempre sozinho, sozinho, sozinho – ouço o silêncio tombar e espalhar seus círculos até os mais longínquos recantos. Saciado e repleto, sólido na satisfação da meia-noite, eu, a quem a solidão destrói, deixo que o silêncio tombe gota a gota.”

(Virginia Woolf)


segunda-feira, 16 de maio de 2011


"Faz frio hoje. O inverno está chegando. Estranho, o inverno sempre me deixa um pouco mais profundo. Me volto para dentro de mim mesmo, tenho a impressão exata de que me pareço com um dos plátanos da praça aí de baixo: hirto, seco, mas guardando alguma coisa por dentro. Quem sabe se essa tristeza que tenho, tão parecida com esse frio envergonhado de não ser frio — quem sabe, se não é apenas o derrubar das folhas?"

(Caio Fernando Abreu)



sexta-feira, 13 de maio de 2011

Enredos & Leituras

Você lê e sofre.

Você lê e ri.

Você lê e engasga.

Você lê e tem arrepios.

Você lê, e a sua vida vai-se misturando no que está sendo lido.

(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube
e digo da palavra: não digo (não posso ainda acreditar na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto.

(Ana Cristina César)




domingo, 8 de maio de 2011

De suave e aérea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horóscopo do nosso encontro benéficos conjuntos culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a matéria incerta de sonho visto que se intrometia na nossa consciência de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção ácida de que não vale a pena viver. Renascia aquela primavera que, embora por erro, podíamos pensar que houvéssemos tido. No desprestígio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre árvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.

Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma névoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar ali estremecimentos. Púrpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lâmpada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fora, árvores cheirando a verdes na imensa noite mais estrelada do outro lado do monte. Assim, as tuas agruras tiveram o seu consórcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de régio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo deixando só as sombras, e os engastes, mágoas das águas nos lagos aziagos entre buxos por portões (a vista de longe) Watteau, a angústia, e nunca mais. Milénios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e por isso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitáveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampiões, os recessos, as asas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, sufocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angústia fora. Amarelo, verde-negro, azul-amor — tudo morto, minha alma, tudo morto, e todos os navios aquele navio sem partir! Reza por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que rezas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memória turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Desígnios Incertos, Mãe das Carícias e das Bênçãos inconciliáveis com existirem...

(Bernardo Soares)

sexta-feira, 6 de maio de 2011





tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado

(Alice Ruiz)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Chuvas



Reclama-se da chuva, mas ninguém reclama do barulho da chuva.

(Fabrício Carpinejar)

domingo, 1 de maio de 2011

1º de Maio

Diante da porta da fábrica
O trabalhador súbito pára
O dia lindo o puxa pela roupa
E como ele se volta
E olha o sol
Tão rubro tão redondo
Sorrindo no seu céu de chumbo
Dá uma piscada
Familiar
Diz então camarada Sol
Não achas que é
Uma grande idiotice
Dar um dia como este
A um patrão?

(Jacques Prévert)