segunda-feira, 31 de maio de 2010

O tempo só anda de ida



Me procurei a vida inteira e nunca consegui encontrar
- pelo que fui salvo

Imagens são as palavras que nos faltaram

Repetir, repetir até ficar diferente
Repetir é dom do estilo

Olho vê
Lembrança revê
Imaginação transvê
O mundo precisa transver

(Manoel de Barros)

domingo, 30 de maio de 2010

Nada...


“O trabalho está desorganizado, muito ruim, muito confuso. Material eu tenho e em abundância. O que me falta é o tino da composição, o verdadeiro trabalho. Minha tendência seria a de pensar apenas e não trabalhar nada. Mas isso não é possível. O trabalho de compor é o pior. Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando. Não sei qual é o bem disso, sei que é essa forma confusa de vida que vivo. Uma pessoa que quisesse tomar minha direção seria bem vinda... Eu nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para desistir.”

(Clarice Lispector)

sábado, 29 de maio de 2010

Limites

Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim:
vivo me perdendo de vista.
Preciso de paciência porque sou vários caminhos,
inclusive o fatal beco-sem-saída.

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ora & Ora

Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta.
Ora o vinho bebemos porque é festa,
Ora o vinho bebemos porque há dor.
Mas de um e de outro vinho nada resta.

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Palavras

Há vários modos de matar um homem:

com o tiro, a fome, a espada

ou com a palavra

– envenenada.

.

Não é preciso força.

Basta que a boca solte

a frase engatilhada

e o outro morre

– na sintaxe da emboscada.

(Affonso Romano de Sant’Anna)

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Tempo

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado - ou, pelo menos, não dou por isto -
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.

O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada.
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.

Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada.

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.

Olhamos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

(Álvaro de Campos)


sexta-feira, 21 de maio de 2010

quem sabe...


(...) um dia nos levaremos deste tempo
se levar houver

(Cacaso)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Pensamentos


Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Uma 'nova' segunda-feira

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero. Para todos nós descerá a noite e chegará diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

(Fernando Pessoa)

domingo, 16 de maio de 2010

Quem sabe...

Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira mar.
Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passaram, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse - de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta - tudo isso, no meu passeio à beira mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo.
Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira mar…
Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio noturno à beira mar!

Fernando Pessoa (Bernardo Soares), em seu ‘Livro do Desassossego’

É preciso...


É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo.

(Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

As andorinhas já devem ter chegado no sul ...


Um vôo de andorinha
Deixa no ar o risco de um frêmito...
Que é isto, coração?! Fica aí, quietinho:
Chegou a idade de dormir!
Mas
Quem é que pode parar os caminhos?
E os rios cantando e correndo?
E as folhas ao vento? E os ninhos...

(Mário Quintana)

terça-feira, 11 de maio de 2010

Anoitecer



Ao longo do bazar brilham pequenas luzes.
A roda do último carro faz a sua última volta.
Os búfalos entram pela sombra da noite,
onde se dispersam.

As crianças fecham os olhos sedosos.
As cabanas são como pessoas muito antigas,
sentadas, pensando.

Uma pequena música toca no fim do mundo.

Uma pequena lua desenha-se no alto do céu.

Uma pequena brisa cálida
flutua sobre a árvore da aldeia
como o sonho de um pássaro.

Oh, eu queria ficar aqui,
pequenina.

(Cecília Meireles)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Melancolia

Melancolicamente
Subo a colina
De sarças em flor.

(Yosa Buson)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Somos apenas canetas com tinta?


Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
-----
Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?

(Àlvaro de Campos)

domingo, 2 de maio de 2010

Folhas, ar e terra...

(...)
Escrevo para ser reescrito.
Ando no armazém da neblina, tenso,
sob ameaça do sol.
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido.
(...)

(Fabrício Carpinejar)

sábado, 1 de maio de 2010

1º de Maio

“As cabeças levantadas/ máquinas paradas/ dia de pescar/ pois quem toca o trem pra frente/ também de repente/ pode o trem parar”

(Chico Buarque)