domingo, 28 de fevereiro de 2010

Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos...
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o mu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando...
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto...
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua...
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho.

(Guimarães Rosa)

sábado, 27 de fevereiro de 2010




E penso
a face fraca do poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura
flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
pânico iminente do nada.

(Ana Cristina Cesar)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010



As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras,
podem ter visitado as terras mas estranhas;
nada lhes restou,
nada lhes sobrou.
Uma vida não basta apenas ser vivida,
também precisa ser sonhada.

(Mário Quintana)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010


Sonhei um sonho
e lembrei-me do sonho
e esqueci-me do sonho
e sonhei que procurava
em sonho aquele sonho
e pergunto se a vida
não é um sonho que procurava um sonho.

(Cecília Meireles)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

À leve embriaguez da febre ligeira, quando um desconforto mole e penetrante e frio pelos ossos doridos fora e quente nos olhos sob têmporas que batem — a esse desconforto quero como um escravo a um tirano amado. Dá-me aquela quebrada passividade trémula em que entrevejo visões, viro esquinas de ideias e entre entrepolamentos de sentimentos me desconcerto.
Pensar, sentir, querer, tornam-se uma só confusa coisa. As crenças, as sensações, as coisas imaginadas e as actuais estão desarrumadas, são como o conteúdo misturado no chão, de várias gavetas subvertidas.

(Bernardo Soares)

sábado, 20 de fevereiro de 2010


A poesia está guardada nas palavras
- é tudo o que eu sei.
Meu fado é de não entender quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim poderoso não é aquele
que descobre ouro.
Poderoso para mim é aquele que
descobre as insignificâncias: do mundo e as nossas.
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

(Manoel de Barros)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010



Sei que às vezes uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?

(Legião Urbana)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Dia brancamente nublado


No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo...

Se o homem fosse, como deveria ser,
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais,
Animal directo e não indirecto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do conjunto;
Um sentido, como ver e ouvir, do total das coisas

E não, como temos, um pensamento do conjunto;
E não, como temos, uma ideia do total das coisas.
E assim - veríamos - não teríamos noção de conjunto ou de total,
Porque o sentido de total ou de conjunto não seria de um
total ou de um conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as coisas - eis o erro e a dúvida.
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas, como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada,
Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.

O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

Estas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas, pensadas:
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim...
(Alberto Caeiro)




terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Deixa ficar


Há rotinas que são fatais
Mas outras são a coreografia da vida
(Isabel Allende)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

A vida é que nos vive


A vida humana
- na verdade toda a vida -
É poesia.
Nós a vivemos inconscientemente,
dia a dia,
fragmento a fragmento,
mas na sua totalidade
inviolável,
Ela é que nos vive!

(Lou Andreas–Salomé)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

(Álvaro de Campos)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010


Se não houvesse imperfeição, havia uma coisa a menos,
E deve haver muita coisa
Para termos muito que ver e ouvir…
(Fernando Pessoa)

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Labirinto

Sozinha caminhei no labirinto
Aproximei meu rosto do silêncio e da treva
Para buscar a luz dum dia limpo.

(Sophia de Mello Breyner)

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010



(...)
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma...

(...)
(Chico Buarque)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Quarta-Feira

(...)
noite de verão
escrevendo vento
eu e o vento
(...)

(Alice Ruiz)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Trapo


O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso?
Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

(Álvaro de Campos)