sábado, 30 de junho de 2012

Um vinho que abri...

"ODE AO VINHO"


Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vino, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste em um copo,
em um canto, em um homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.
O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
cai muros,
penhascos,
se fecham os abismos,
nasce o canto.
Oh tú, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.
Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou no outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no cerimonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
(Pablo Neruda)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fim das ilusões?

A vingança da porta


Era um hábito antigo que ele tinha:

Entrar dando com a porta nos batentes.

- Que te fez essa porta? a mulher vinha

E interrogava. Ele cerrando os dentes:


Nada! Traze o jantar! - Mas à noitinha

Calmava-se; feliz, os inocentes

Olhos revê da filha, a cabecinha

Lhe afaga, a rir, com as rudes mãos trementes.


Uma vez, ao tornar à casa, quando

Erguia a aldraba, o coração lhe fala:

Entra mais devagar.. - pára, hesitando...
Nisto nos gonzos range a velha porta,

Ri-se, escancara-se. E ele se vê na sala,

A mulher como doida e a filha morta.


(Alberto de Oliveira)