domingo, 18 de dezembro de 2011

Que seja doce...


Te desejo uma fé enorme.

Em qualquer coisa, não importa o quê.

Desejo esperanças novinhas em folha, todos os dias.


(Caio Fernando de Abreu)

domingo, 11 de dezembro de 2011

Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Houve um tempo: nós o perdemos? Tudo o que poderia vibrar calou-se numa espera demasiada. Talvez te sirva este vazio, que é como teu rosto contornado pelo silêncio ou pelo fio muito fino de uma lágrima. Podes te acomodar aí, como uma flor, um fruto esquecido sobre a mesa. Prometo: virei pisando leve, para que nem estremeça na tua vida pousada na minha.

(Lya Luft)

domingo, 20 de novembro de 2011

"Só existe uma solidão. É grande e difícil de suportar. E quase todos nós conhecemos horas em que de bom grado a cederíamos a troco de qualquer convivência, por muito trivial e mesquinha que fosse; até pela simples ilusão de uma pequena coincidência com qualquer outro ser, mesmo com o primeiro que aparecesse, ainda que assim resultasse talvez menos digno. Mas acaso sejam estas, precisamente, as horas em que a solidão cresce – pois o seu desenvolvimento é doloroso como o crescimento das crianças e triste como o início da Primavera – ela, sem embargo, não deve desconcertá-lo, pois o único que, por certo, nos faz falta é isto: Solidão, grande e íntima solidão. Mergulhar em si mesmo e, durante horas e horas, não encontrar ninguém… Isto é o que importa conseguir. Estarmos sós, como estivemos sós quando éramos crianças, enquanto à nossa volta andavam os grandes de um lado para o outro, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, só porque eles se mostravam muito atarefados, e porque nós não entendíamos nada dos seus afazeres..."

(Rainer Maria Rilke, in: Cartas a um Jovem Poeta)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Pretensas palavras em silêncio

jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência freqüentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta

(Ana Cristina Cesar)

domingo, 6 de novembro de 2011

Para Ana e Marcos, com muito amor...

Para mim, atualmente, companheirismo e lealdade são meio sinônimos de felicidade. Meus amigos são muito fortes e muito profundos, são amigos de fé, para quem eu posso telefonar às cinco da manhã e dizer: olha, estou querendo me matar, o que eu faço? Eles me dão liberdade para isso, não tenho relações rápidas, quer dizer, tenho porque todo mundo tem, mas procuro sempre aprofundar. E isso é felicidade, você poder contar com os outros, se sentir cuidado, protegido. Dei esse exemplo meio barra pesada de me matar....esquece, posso ligar para ver o nascer do sol no “Recife” às cinco da manhã. Já fiz isso, inclusive.

(Caio Fernando de Abreu)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011



Antes eu dizia: Escrevo porque não quero morrer

Mas agora mudei.

Escrevo para compreender o que é um ser humano.


(José Saramago)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011



(...)
Nesse lugar só habitará
Quem entender a alma
da terra e do mar


(Marize Castro)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sexta-Feira

...que o dia possa ser "branco e azul" .... com leveza...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011



“Oh, um escritor devia ser capaz de falar sobre tudo o que é importante”, disse Necip teimosamente. “Se eu fosse um escritor, iria querer falar sobre todas as coisas sobre as quais as pessoas não falam. Você não pode me dizer tudo, só desta vez?”
“Então pergunte.”
“Há uma coisa que todos queremos na vida, não é?”
“É verdade.”
“Então, você pode me dizer o que é?”
Ka sorriu e não disse nada.

(Trechos do Livro Neve, de Orhan Pamuk)

domingo, 23 de outubro de 2011


"Breve será dia...
Guardemos silêncio...
A vida assim o quer."

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011


Denso, mas transparente Como uma lágrima...
Quem me dera Um poema assim!
Mas... Este rascar da pena!
Esse Ringir das articulações...
Não ouves?!
Ai do poema Que assim escreve a mão infiel
Enquanto - em silêncio a pobre alma
Pacientemente espera.

(Mário Quintana)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sabedoria...

Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram maior proveito dos equívocos.

(Nietzsche)


segunda-feira, 17 de outubro de 2011





Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

(Hilda Hilst)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011


“Claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo?”

(Caio Fernando de Abreu)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.

(José Saramago)

domingo, 2 de outubro de 2011


“Sei que todos, algum dia, acordamos com a senhora desilusão sentada na beira da cama. Mas a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada:vale tudo menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso.”

(Lya Luft)

sexta-feira, 30 de setembro de 2011


Decepção não é grosseria, e não há como disfarçar.

(Fabrício Carpinejar)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sei que é primavera


(...)
Sei o que é primavera porque sinto um perfume de pólen no ar, que talvez seja o meu próprio pólen, sinto estremecimentos à toa quando um passarinho canta, e sinto que sem saber eu estou reformulando a vida. Porque estou viva. A primavera torturante, límpida e mortal que o diga, ela que me encontra cada ano tão pronta para recebê-la. Bem sei que é uma perturbação de sentidos. Mas, por que não ficar tonta? Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera, aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e porque sem eles eu morreria, aceito a possibilidade do grande Outro existir apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.

Sinto que viver é inevitável. Posso na primavera ficar horas sentada fumando, apenas sendo. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que sinto a primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia na primavera é que vou morrer.(...)

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011






Ver muito lucidamente prejudica o sentir demasiado.
E os gregos viam muito lucidamente, por isso pouco sentiam.
De aí a sua perfeita execução da obra de arte.

(Fernando Pessoa)

domingo, 18 de setembro de 2011





Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra
com ordem. Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.
Ligo para os outros.
O que eu poderia dizer é perigoso: certeza (assim como
eu disse: daqui dez anos estarei de volta) de que nos
reencontramos, cedo ou tarde.
Mas não sei mais quando

Cedo ou tarde reencontro - o ponto
de partida.

(Ana Cristina Cesar)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011





Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em torno as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.

(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Igual-Desigual





Igual-desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em versos livres são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

(Carlos Drummond de Andrade)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Quando eu morrer





Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teu soluço
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.

(Ana Cristina Cesar)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Enfim chegou setembro...


De tão azul, o céu parecerá pintado. E nós embarcaremos logo rumo à ilhas Cíclades.
Houvesse cortinas no quarto, elas tremulariam com a brisa entrando pelas janelas abertas, de manhã bem cedo. Acordei sem a menor dificuldade, espiei a rua em silêncio, muito limpa, as azaléias vermelhas e brancas todas floridas. Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul. Respirei fundo. O ar puro da cidade lavava meus pulmões por dentro. Setembro estava chegando enfim.
Na sala, encontrei a mesa posta para o café — leite e pão frescos, mamão, suco de laranja, o jornal ao lado. Comi bem devagarinho, lendo as notícias do dia. Tudo estava em paz, no Nordeste, no Oriente Médio, nas Américas Central, do Norte e do Sul. Na página policial, um debate sobre a espantosa diminuição da criminalidade. Comi, li, fumei tão devagarinho que mal percebi que estava atrasado para o trabalho. Achei prudente ligar, avisando que iria demorar um pouco.
A linha não estava ocupada. Quando o chefe atendeu, comecei a contar uma história meio longa demais, confusa demais. Só quando ele repetiu calma, calma, pela terceira vez, foi que parei de falar. Então ele disse que tinha acabado de sair de uma reunião com os patrões: tinham decidido que meu trabalho era tão bom, mas tão bom que, a partir daquele dia, eu nem precisava mais ir lá. Bastava passar todo fim de mês, para receber o salário que havia sido triplicado.
Desliguei um pouco tonto. Então, podia voltar a meu livro? Discreta e silenciosa como sempre, a empregada tinha tirado a mesa. No centro dela, agora, sobre uma toalha de renda branca, havia rosas cor de chá, aquelas que Oxum mais gosta. No escritório, abri as gavetas e apanhei a pilha de originais de três anos, manchados de café, de vinho, de tinta e umas gotas escuras que pareciam sangue. Reli rapidamente. E a chave que faltava, há tanto tempo, finalmente pintou. Coloquei papel na máquina, comecei a escrever iluminado, possuído a um só tempo por Kafka, Fitzgerald, Clarice e Fante. Não, Pedro não tinha ido embora, nem Dulce partido, nem Eliana enlouquecido. As terras de Calmaritá realmente existiam: para chegar lá, bastava tomar a estrada e seguir em frente.
Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar, o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas gregas como tínhamos combinado naquela noite. Se podia voltar, insistiu, para sermos felizes juntos. Eu disse que sim, claro que sim, muitas vezes que sim, e aquela voz repetiu e repetia que me queria desta vez ainda mais, de um jeito melhor e para sempre agora. Os passaportes estavam prontos, nos encontraríamos no aeroporto: São Paulo/Roma/Atenas, depois Poros, Tinos, Delos, Patmos, Cíclades. Leve seu livro, disse. Não esqueça suas partituras, falei. Olhei em volta, a empregada tinha colocado para tocar A sagração da primavera, minha mala estava feita. Peguei os originais, a gabardine, o chapéu e a mala. Então desci para a limusine que me esperava e embarquei rumo a.
PS — Andaram falando que minhas crônicas estavam tristes demais. Aí escrevi esta, pra variar um pouco. Pois como já dizia Cecília/Mia Farrow em A cor púrpura do Cairo: “Encontrei o amor. Ele não é real, mas que se há de fazer? Agente não pode ter tudo na vida...” Fred e Ginger dançam vertiginosamente. Começo a sorrir, quase imperceptível. Axé. E The End.

(Caio Fernando Abreu, O Estado de S. Paulo, 27/8/1986 - In Pequenas Epifanias)

quarta-feira, 31 de agosto de 2011





Mentira...

Mentira lo que dice
Mentira lo que hace
Mentira la mentira
Mentira la verdad
Mentira lo que cuece
Bajo la oscuridad
Mentira el amor
Mentira el sabor
Mentira la que manda
Mentira comanda
Mentira la tristeza
Quando empieza
Mentira non se va
Mentira, mentira..
La mentira
Mentira non se borra
Mentira non se olvida
Mentira la mentira
Mentira cuando llega
Mentira nunca se va
Mentira la mentira
Mentira la verdad
Todo es mentira en este mondo
Todo es mentira la verdad
Todo es mentira yo me digo
Todo es mentira por que sera?

(Mano Chao - Clandestino)

sábado, 20 de agosto de 2011

Para atravessar agosto



Para atravessar agosto é preciso, antes de tudo, paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro – e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah! Escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir, dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles, se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos. Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos – ou precauções-úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade…Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo ZAP): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu – sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.


Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques – tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas – coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo, evasão, escapismos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter de mais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco...

Caio Fernando Abreu (6/8/1995 – para o jornal o Estado de São Paulo)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Extravio



Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala

(Ferreira Gullar)

terça-feira, 16 de agosto de 2011



Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...


(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A propósito do nada



sou
para o outro
este corpo esta
voz
sou o que digo
e faço
enquanto posso

mas
para mim
só sou
se penso que sou
enfim
se sou
a consciência
de mim

e quando
vinda a morte
ela se apague
serei o que alguém acaso
salve
do olvido

já que
para mim
(lume apagado)
nunca terei existido

(Ferreira Gullar)

domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos Pais





Aquela pequena agulha que, no dedo - com dedal-, cerzia com delicadeza mais uma bainha de calça, também cerzia o afago em cada chegada e o sorriso das nossas molequices.

Lembranças...

sábado, 6 de agosto de 2011



Quando se deseja realmente dizer alguma coisa, as palavras são inúteis. Remexo o cérebro e elas vêm, não raras, mas toneladas. Deixam sempre um gosto de poeira na boca – a poeira do que se tentava expressar, e elas dissolveram. Quanto mais palavras ocorrem para vestir uma idéia, mais essa idéia resiste a ser identificada. As sucessivas roupas sufocam a sua nudez. E todas as palavras são uma grande bolha de sabão, às vezes brilhante, mas circundando o vazio.
Ah, se eu pudesse escrever com os olhos, com as mãos, com os cabelos – com todos esses arrepios estranhos que um entardecer de outono, como o de hoje, provoca na gente.

(Caio Fernando de Abreu)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011





Acontecem coisas estranhas quando estou num espaço muito amplo. Uma vontade de voar, parece que bastaria abrir os braços para fundir-me com o céu. Ao mesmo tempo, dá vontade também de ficar na terra, e viver, viver muito, com todas as miudezas do cotidiano. Impressão de ser maior que tudo, sensação de força, certeza de vitória, vitória tão certa e fácil como a coisas da natureza que se mostram ali. E também uma grande humildade, consciência de ser ínfimo em relação ao azul-azul do céu, ao azul-em-cor do rio. Procuro palavra para definir o que sinto e não encontro. Talvez elas nem sequer existam, talvez seja apenas um fluxo mais forte de vida abrindo os sentidos, embrutecendo o raciocínio.

(Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, 27 de julho de 2011





TUA VOZ

Emboscado em minha escritura
cantas em meu poema.
Refém de tua doce voz
petrificada em minha memória.
Pássaro preso à tua fuga.
Ar tatuado por um ausente.
Relógio que bate comigo
para que nunca desperte

(Alejandra Pizarnik)

sábado, 23 de julho de 2011

De que são feitos os dias?


De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.


(Cecília Meireles)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

...mas tem lá sua beleza...


Aos 16 anos, eu não conseguia admitir que alguém pudesse gostar de inverno. Só podia ser maluco, deprimido, estressado ou coisa pior. Escolher logo a estação mais encarangada do ano? Não fazia sentido. Na época, era fanática pelo verão, e meus argumentos pareciam irrefutáveis: ora, no verão ficamos perto do mar, usamos menos roupa, saímos mais de casa. No verão os dias são longos, praticamos mais atividades físicas, comemos mais saladas. Quem trocaria essa vida saudável por dias cinzentos, curtos e gelados?

Quem trocaria braços abertos sobre a Guanabara por braços cruzados e mãos embaixo da axila? Quem preferiria correr o risco de se gripar dia sim, outro também? E quem haveria de considerar agradável sair debaixo das cobertas de manhã cedo para enfrentar um dia que nem virou dia ainda?

Mas isso foi aos 16. Cresci, amadureci e me reconciliei com o inverno. Passei a valorizar os casacões, as botas, o vinho, a lareira, as paisagens serranas, enfim, o lado romântico da estação. Cheguei a admitir em um poema que o inverno era minha estação preferida. Provavelmente, uma tentativa de que me levassem mais a sério. Adultos respeitáveis não combinam com bermuda, e sim com sobretudos.

Não ficam rindo à toa, mantêm a classe da sisudez. Não tomam chope, não dançam em rodas de samba, odeiam Carnaval, nunca foram fotografados em situações vulgares. Escritores, menos ainda. Imagine uma Marguerite Duras de biquíni em Capão, um Philip Roth de sunga tomando banho de mangueira no quintal. O cachecol é que dignifica os intelectuais.

Segui vivendo, amadureci mais um pouco e finalmente cheguei a uma conclusão definitiva: às favas com minha credibilidade, que a adulta em mim procure asilo na Sibéria. Hoje afirmo, assino embaixo e reconheço firma em cartório se for preciso: tenho pavor de sentir frio. A elegância que os dias gélidos me conferem não compensa a leveza e o bom humor que me são subtraídos. E vinho tinto eu tomo em qualquer estação.

Só quem ganha com o inverno é o turismo, já que o frio é nossa principal atração turística. No mais, quem em seu juízo perfeito iria curtir passar o dia com o nariz gelado, as pernas enrijecidas e sentindo-se tentado a matar o banho? Quem não se assusta com o valor da conta de luz no fim do mês? E o que se gasta em farmácia? Mulheres, me ajudem: como se vestir adequadamente para um casamento numa noite em que faz 4°C? E vocês, rapazes, têm tido coragem de tirar as meias antes de dormir?

Cresci, amadureci, mas não adiantou nada: contrariando a evolução da espécie, voltei ao tempo em que era movida a energia solar. Menos mal que sempre teremos intelectuais de cachecol para salvar a pátria.

Martha Medeiros - Jornal Zero Hora, 06 de julho de 2011.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Essa chuva



Essa chuva não cai
ela é atirada como se atiram pedras,
lapida o ar ferindo folha e telha
sangrando em lama o chão
por entre os talos.


Essa chuva não cai
ela é lançada com acerto de flecha
por mão que bem conhece o seu ofício.
E para o olho ausente
tudo é alvo.


(Marina Colasanti)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Esquecimentos

Esse de quem eu era e era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saudade,
Para sempre de mim desapareceu.

Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a claridade!
Ceguei… tateio sombras… que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro…
A sombra dos meus olhos, a escurecer…
Veste de roxo e negro os crisântemos…

E desse que era meu já me não lembro…
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos…!

(Florbela Spanca)







domingo, 3 de julho de 2011





Imagens são palavras que nos faltaram.


(Manoel de Barros)








segunda-feira, 27 de junho de 2011


Tem horas que eu me perco sem você aqui, aí eu lembro: tá tão longe de mim.
E o meu coração grita: mas tá aqui dentro.

(Caio Fernando de Abreu)

sexta-feira, 24 de junho de 2011



Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.

Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

(Affonso Romano de Sant'Anna)

domingo, 19 de junho de 2011



Conheço a residência da dor.
É num lugar afastado,
Sem vizinhos, sem conversa, quase sem lágrimas,
Com umas imensas vigílias, diante do céu.

A dor não tem nome,
Não se chama, não atende.
Ela mesma é solidão:
Nada mostra, nada pede, não precisa.
Vem quando quer.

O rosto da dor está voltado sobre um espelho,
Mas não é rosto de corpo,
Nem o seu espelho é do mundo.

Conheço pessoalmente a dor.
A sua residência , longe,
em caminhos inesperados.

Às vezes sento-me em sua porta, na sombra das suas árvores.

E ouço dizer:
"Quem visse, como vês, a dor, já não sofria".
E olho para ela, imensamente.
Conheço há muito tempo a dor.
Conheço-a de perto.
Pessoalmente.

(Cecília Meireles)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponto que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembranças de palavras. Se és morte, como te alcançar.
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda mas deixa rastro - tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não diz.
A noite desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais distantes.
Mas este primeiro silêncio ainda não é o silêncio. Que se espere, pois as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da terra a lua alta. Então ele, o silêncio, aparece.
O coração bate ao reconhecê-lo.
[...]

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fernando Pessoa: uma homenagem

O valor das coisas não está no tempo que elas duram,

mas na intensidade com que acontecem.

Por isso existem momentos inesquecíveis,

coisas inexplicáveis e

pessoas incomparáveis.

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Fico pensando...

Fico pensando se viver não será sinônimo de perguntar

A gente se debate, busca, segura o fato com duas mãos sedentas e pensa: Achei! Achei!

Mas ele escorrega se espatifa em mil pedaços, como um vaso de barro coberto apenas por uma leve camada de louça.

A gente fica só, outra vez, e tem que começar do nada, correndo loucamente em busca dos outros vasos que vê. Cada um que surge parece o último, mas todos são de barro, quebram-se antes que possamos reformular as perguntas.

E começamos de novo, mais uma vez, dia após dia, ano após ano.

Um dia a gente chega à frente do espelho e descobre: Envelheci!

Então a busca termina. As perguntas colam no fundo da garganta, e vem a morte.

Que talvez seja a grande resposta.
A única.

(Caio Fernando de Abreu)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

– Dito, eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de donde, me afrontando...

– Deve não, Miguilim, descarece. Fica todo olhando para a tristeza não... (...) A alegria do Dito em outras ocasiões valia, valia, feito rebrilho de ouro.

(Guimarães Rosa)

domingo, 29 de maio de 2011

É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo

(Caio Fernando de Abreu)

sábado, 28 de maio de 2011

Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê... Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Onde mora a saudades...

Fui em busca de vãs utopias.
Lutei contra moinhos de vento.
Dei murros em ponta de faca.

Quis reter o ultimo raio de sol
Do poente...
E a última gota de água
Da chuva...

Guardei vaga-lumes brilhantes
Em redomas translúcidas...
Guardei os girinos do rio
Em aquários de vidro...

Enchi vidros de água
Com giz colorido.
Quis reter suas cores...
Acreditei... que não desbotariam.

Desbotam...

As águas... As roupas no varal... As aquarelas...
Desbotam os olhos... e as fotografias...

Não venci os moinhos de vento...
Tenho as mãos machucadas
Das pontas de faca....

O sol não me deu o seu último raio...
E a chuva negou-me sua última gota...

Vaga-lumes não fizeram brilhar
Minha lanterna mágica...
E os girinos do rio não se tornaram
Peixes coloridos...

Viraram sapos!

Que inda hoje coaxam
No brejo das almas...
Onde mora a saudade...

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 23 de maio de 2011



Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.


(Guimarães Rosa)