quarta-feira, 16 de junho de 2010

Neste dia a chuva não parou



Esta tarde a trovoada caiu

Pelas encostas do céu abaixo

Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta

Sacode uma toalha de mesa,

E as migalhas, por caírem todas juntas

Fazem algum barulho ao cair,

A chuva chiou do céu

E enegreceu os caminhos...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz não,

Não sei porquê - eu não tinha medo -

Quis-me rezar a Santa Bárbara

Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah, é que rezando a Santa Bárbara

Eu sentir-me-ia ainda mais simples

Do que julgo que sou...

Sentir-me-ia familiar e caseiro

E tendo passado a vida

Tranqüilamente, ouvindo a chaleira,

E tendo parentes mais velhos que eu

E fazendo isso como se florisse assim.

Sentir-me-ia alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...

Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,

Julgará que ela é gente e visível

Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem

As flores, as árvores, os rebanhos,

De Santa Bárbara,?... Um ramo de árvore,

Se pensasse, nunca podia

Construir santos nem anjos...

Poderia julgar que o sol

Alumia e que a trovoada

É um barulho repentino

Que principia com luz.

Ah, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde de existir

Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,

Fiquei outra vez menos feliz...

Fiquei sombrio e adoecido e soturno

Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça

E nem sequer de noite chega...

(Fernando Pessoa)

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