quinta-feira, 9 de julho de 2009

Servilidade altruísta

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...
— O dilúvio de Deus e o bebe loirinho boiando morto à tona de água,
Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva,
E a vasta humilhação de existir um amor taciturno
—Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria
—Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
—A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim..
Meus versos são a minha impotência.
O que não consigo, escrevo-o;
E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia...
A costureira estúpida violada por sedução,
O marçano rato preso sempre pelo rabo,
O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
— Não distingo, não louvo, não (...)
—São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes...
Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim...
Meu coração esquife, meu coração (...),
meu coração cadafalso —
Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.
Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
Bebedeira da servilidade altruísta,
Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo....

(Álvaro de Campos)

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