terça-feira, 7 de julho de 2009

Sobre as molduras...


RETRATO PINTADO DO CASAL

Fabrício Carpinejar

Nas moradias do interior, havia sempre dois quadros. A Última Ceia na cozinha e o retrato ovalado do casal de patriarcas no alto da sala. Ambos habituais em residências respeitáveis, consensuais a exemplo da escada em igreja e dos morrinhos em praça.

Marido e mulher alçados à cúpula de madeira. Maquiados para a eternidade.

A imagem revelava algo de alucinação. De amor assombrado. De inscrição de lápide. Um retrato que dava a noção de que o homem e a mulher estavam mortos mesmo que andando animados pelos corredores. Colocar quadro de um casal vivo mexia a terra por debaixo das tábuas.

A casa se tornava um túmulo. A mesa mancaria os pratos. As portas rangeriam portões de ferro.
Emanava daquele canto uma sensação de irrealidade, de antiguidade precoce. Como a fotografia ficava ruim, um artista retocava os traços com tinta a óleo. Pregava sombra no olho, corava a face, cobria as vestes de tons marrons e azulados. Melhorava o rosto.

As figuras masculinas ressurgiam com vermelho forte na boca, tomadas de um batom amoroso e fúnebre.

A fotografia também pedia a mão da pintura. Era e não era aquilo. Duas traições, a do fotógrafo e do pintor, formavam uma esquisita fidelidade. A distorção traduzia a paranormalidade de um longo casamento.

Numa conversa de café, um amigo - irei chamá-lo de Luiz como meu pai - confessou a dificuldade de encontrar a mulher de sua vida. Quem sabe até encontrou, mas não é igual a merecê-la ou suportá-la. Ninguém tem mais paciência para tolerar um amor real. Prefere um amor dentro de sua realidade.

Eu perguntei qual o sinal da paixão incondicional: Comprar aliança? Casar? Viver junto? Ter filhos? Repartir as contas?

O quê, afinal? De que modo expressaria o fim da busca?

Ele me olhou usando seus pés. Tirou os óculos e envelheceu dez anos. Pedi para que colocasse os óculos para voltar à minha idade. Alinhou as lentes e respondeu: - Fazer um retrato pintado com ela.

Brinquei que parecia idéia ultrapassada. Para mostrar quem manda e impor autoridade aos parentes. Talvez porque seja mais fácil desobedecer a um rosto afetivo do que a um quadro.
E percebi que me enganei, o desejo foi descendo lentamente em meus ombros, como um casaco redescoberto. E me transmitiu uma tranqüilidade acalorada. Uma paz de copo de água na cabeceira, de terço no retrovisor, de chave no bolso.

Um retrato na parede pára o tempo dentro de casa. Assim como os familiares são lavados e vestidos para o enterro, aquilo era lavar e vestir o par em vida. E percebi que não prometemos com medo de não cumprir. Quando falamos que não cumpriremos já estamos fazendo outra promessa. A promessa da negação.

Não há saída: o ceticismo é uma fé ao contrário. Penso com calma e vejo que a moldura pode ser uma aliança.

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