quinta-feira, 22 de maio de 2008

NINGUÉM PODE SABER ...


Por favor, chame-me pelos meus verdadeiros nomes
(Thich Nhat Hanh, trad. Samuel Weimar Cavalcante)
Não diga que partirei amanhã,
pois hoje mesmo estarei chegando.
Olhe profundamente: eu chego em cada segundo
para ser um botão de rosa num galho da primavera,
para ser um passarinho, com as asinhas ainda frágeis,
aprendendo a cantar em meu novo ninho,
para ser uma lagarta no coração da flor,
para ser uma jóia se escondendo em uma pedra.
Estou chegando para poder rir e chorar,
para temer e ter esperança.
O ritmo do meu coração é o nascimento e a
morte de tudo o que é vivo.
Sou a efemérida metamorfoseando-se na superfície do rio,
e sou o pássaro que, quando chega a primavera, vem a tempo
de comer a efemérida.
Sou a rã nadando alegremente no lago límpido,
e também sou a serpente que, aproximando-se em silêncio,
se alimenta da rã.
Eu sou a criança em Uganda, só pele e osso,
com minhas pernas finas como varas de bambu,
e sou o vendedor de armas, vendendo armas letais para Uganda.
Sou a garota de doze anos, refugiada num pequeno barco,
que se joga ao mar depois de ser estuprada por um pirata,
e sou o pirata, com meu coração ainda incapaz de ver e amar.
Sou um membro do Politburo, com enorme poder em minhas mãos,
e sou o homem que tem que pagar sua "dívida de sangue" ao meu povo,
morrendo lentamente em campo de trabalhos forçados.
Minha alegria é como a primavera,
cujo calor faz as flores brotarem
em todos os jardins da vida.
Minha dor é como um rio de lágrimas
que, de tão cheio, enche os quatro oceanos.
Por favor, chama-me pelos meu nomes verdadeiros,
para que eu possa ouvir todo o choro e todo o riso de uma vez,
para que eu possa ver que minha alegria e minha tristeza são uma só.
Por favor, chama-me pelos meus nomes verdadeiros,
para que eu possa despertar
e, assim, deixar a porta do meu coração aberto,
a porta da compaixão.
Refletindo sobre a poesia ou explicando porque "ninguém pode saber"...

Thich Nhat Hanh
Em Plum Village, onde vivo na França, recebemos muitas cartas dos campos de refugiados de Cingapura, da Malásia, Indonésia, Tailândia e das Filipinas. Centenas a cada semana. E muito triste ler essas cartas, mas temos de fazê-lo, temos de nos manter em contato. Fazemos o possível para ajudar, mas o sofrimento é tamanho que às vezes desanimamos. Dizem que metade dos refugiados que fogem em barcos morre no mar. Só metade chega às costas do sudeste da Ásia, e mesmo nesse caso eles podem não estar em segurança.
Muitas meninas, dos refugiados em barcos, são violentadas por piratas. Muito embora as Nações Unidas e muitos países tentem ajudar o governo da Tailândia a acabar com essa pirataria, os piratas continuam a infligir muito sofrimento aos refugiados em barcos. Um dia recebemos uma carta de um refugiado que nos contava a história de uma menina num pequeno barco que foi violentada por um pirata tailandês. Ela só tinha doze anos. Jogou-se no oceano e morreu afogada.
Quando você ouve uma história dessas pela primeira vez, você sente raiva do pirata. Naturalmente toma o partido da menina. A medida que examinar o assunto com maior profundidade, verá tudo de um modo diferente. Se você tomar o partido da menina, é fácil. Basta pegar uma arma e matar o pirata. No entanto, não podemos agir assim. Na minha meditação, vi que, se eu tivesse nascido na aldeia em que o pirata nasceu e tivesse sido criado como ele foi, haveria uma grande probabilidade de que eu me tornasse pirata também. Vi que muitos bebês nascem nas costas do golfo do Sido, centenas a cada dia. Se os educadores, os assistentes sociais, os políticos e outras pessoas não fizerem algo para mudar sua situação, daqui a vinte .e cinco anos uma quantidade deles vai ser pirata. Isso é líquido e certo. Se você ou eu nascêssemos hoje numa daquelas aldeias de pescadores, dentro de vinte e cinco anos poderíamos nos tornar piratas. Quem pega a arma e mata o pirata está matando a todos nós, porque todos nós até certo ponto somos responsáveis por esse estado de coisas.
Depois de uma longa meditação, escrevi o poema. Nele, há três pessoas: a menina de doze anos, o pirata e eu. Será que podemos olhar um para o outro e nos reconhecer no outro? O título do poema é "Chame-me pelos meus nomes verdadeiros, por favor", porque eu tenho muitos nomes. Sempre que ouço um desses nomes, tenho de dizer, "Sim".

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